Entre
nós torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e
imediato. Niekrassov conta num de seus poemas como um camponês bate com
seu chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo.
O poeta mostra que o cavalo, sobrecarregado, atolado com sua carroça,
não pode desvencilhar-se. Então o camponês bate-lhe encarniçadamente,
bate sem compreender o que faz, os
golpes chovem numa espécie de embriaguez. "Não podes puxar, pois puxarás
assim mesmo; morre, mas puxa." A besta sem defesa debate-se
desesperadamente, enquanto seu dono açoita seus doces olhos, donde rolam
lágrimas. Enfim, consegue ele desatolar-se e lá se vai tremendo, sem
fôlego, num andar cambaleante, constrangido, vergonhoso. Produziu isto
em Niekrassov uma impressão espantosa. Mas também não se trata apenas de
um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Foi o que nos explicaram
os mongóis que nos legaram o chicote. No entanto, pode-se também açoitar
as pessoas. Um senhor culto e sua mulher sentem prazer em açoitar com
varas sua filhinha de sete anos. E o papai sente-se feliz porque as
varas têm espinhos. "Isto causará mais dor assim", diz ele. Há seres
tais que se excitam a cada golpe, até o sadismo, progressivamente.
Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais
fortemente. Ela grita, afinal, já sem forças, sufoca: "Papai, meu
papaizinho, tenha dó!" O caso torna-se escandaloso e recorre-se ao
tribunal. Toma-se um advogado. Há muito tempo que o povo russo chama o
advogado "uma consciência que se aluga". O defensor pleiteia em nome de
seu cliente: "O caso é simples; é uma cena de família, como se veem
muitas. Um pai açoitou sua filha, é uma vergonha processá-lo!" O júri
fica convencido, recolhe-se e traz um veredito negativo. O público
exulta por ver absolvido aquele carrasco. Repito-o, é um pendor especial
de muitas pessoas o prazer de torturar as crianças, mas somente as
crianças. Para com os outros indivíduos, esses carrascos se mostram
afáveis e ternos, como europeus instruídos e humanos, mas sentem prazer
em fazer as crianças sofrerem, é sua maneira de amá-las. A confiança
angélica dessas criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Não sabem
aonde ir, nem a quem se dirigir, e isso excita os maus instintos. Dizem
que tudo isso (os castigos físicos) é indispensável para estabelecer a
distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão
caro essa distinção diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as
lágrimas das crianças.
Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também o seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia divina que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço.
Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também o seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia divina que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço.
Fiodor Dostoievski
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