16 de setembro de 2016

As lágrimas das crianças


Entre nós torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato. Niekrassov conta num de seus poemas como um camponês bate com seu chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo. O poeta mostra que o cavalo, sobrecarregado, atolado com sua carroça, não pode desvencilhar-se. Então o camponês bate-lhe encarniçadamente, bate sem compreender o que faz, os golpes chovem numa espécie de embriaguez. "Não podes puxar, pois puxarás assim mesmo; morre, mas puxa." A besta sem defesa debate-se desesperadamente, enquanto seu dono açoita seus doces olhos, donde rolam lágrimas. Enfim, consegue ele desatolar-se e lá se vai tremendo, sem fôlego, num andar cambaleante, constrangido, vergonhoso. Produziu isto em Niekrassov uma impressão espantosa. Mas também não se trata apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Foi o que nos explicaram os mongóis que nos legaram o chicote. No entanto, pode-se também açoitar as pessoas. Um senhor culto e sua mulher sentem prazer em açoitar com varas sua filhinha de sete anos. E o papai sente-se feliz porque as varas têm espinhos. "Isto causará mais dor assim", diz ele. Há seres tais que se excitam a cada golpe, até o sadismo, progressivamente. Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais fortemente. Ela grita, afinal, já sem forças, sufoca: "Papai, meu papaizinho, tenha dó!" O caso torna-se escandaloso e recorre-se ao tribunal. Toma-se um advogado. Há muito tempo que o povo russo chama o advogado "uma consciência que se aluga". O defensor pleiteia em nome de seu cliente: "O caso é simples; é uma cena de família, como se veem muitas. Um pai açoitou sua filha, é uma vergonha processá-lo!" O júri fica convencido, recolhe-se e traz um veredito negativo. O público exulta por ver absolvido aquele carrasco. Repito-o, é um pendor especial de muitas pessoas o prazer de torturar as crianças, mas somente as crianças. Para com os outros indivíduos, esses carrascos se mostram afáveis e ternos, como europeus instruídos e humanos, mas sentem prazer em fazer as crianças sofrerem, é sua maneira de amá-las. A confiança angélica dessas criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Não sabem aonde ir, nem a quem se dirigir, e isso excita os maus instintos. Dizem que tudo isso (os castigos físicos) é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças.
Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também o seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia divina que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço.


Fiodor Dostoievski

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