6 de abril de 2018

O jantar no Brasil


Subordinada às exigências da vida, a hora do jantar variava, no Rio da Janeiro, de acordo com a profissão do dono da casa. O empregado jantava às duas horas, depois da saída do escritório; o negociante inglês deixava a sua loja na cidade ali pelas cinco horas da tarde, para não mais voltar; montava a cavalo e, chegando à sua residência num dos arrabaldes mais arejados da cidade, jantava às seis horas da tarde. O brasileiro de outrora sempre jantou ao meio-dia e o negociante à uma hora.
Era muito importante, principalmente para o estrangeiro que desejasse comprar alguma coisa numa loja, evitar perturbar o jantar do negociante pois este, à mesa, sempre mandava responder que não tinha o que o cliente queria. Em geral não era costume apresentar-se numa casa brasileira na hora do jantar, mesmo porque não se era recebido durante o jantar dos donos. Muitas razões se opunham; em primeiro lugar o hábito de ficar tranquilamente à vontade sob uma temperatura que leva, naturalmente, ao abandono de toda etiqueta; em seguida a negligência do traje, tolerada durante a refeição; e, finalmente, uma disposição para o sossego que para alguns precede e para todos segue imediatamente ao jantar. Esse repouso necessário ao brasileiro termina por um sono prolongado, de duas ou três horas, a que se dá o nome de sesta
No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête-à-tête de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses moleques mimados até a idade de cinco ou seis anos são em seguida entregues à tirania dos outros escravos, que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças, revoltadas por não mais receber das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão. 
Quanto ao jantar em si, compõe-se, para um homem abastado, de uma sopa de pão e caldo gordo, chamado caldo de sustância, porque é feita com um enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho, couves, imensos rabanetes brancos com suas folhas, chamados impropriamente nabos etc., tudo isso bem cozido. No momento de pôr a sopa à mesa, acrescentam-se algumas folhas de hortelã e mais comumente outras de uma erva cujo cheiro muito forte dá-lhe um gosto marcado bastante desagradável para quem não está acostumado. Serve-se ao mesmo tempo o cozido, ou melhor, um monte de diversas espécies de carnes e legumes de gostos muito variados embora cozidos juntos; ao lado coloca-se sempre o indispensável escaldado (flor de farinha de mandioca) que se mistura com caldo de carne ou de tomates ou ainda com camarões; uma colher dessa substância farinhosa semilíquida, colocada no prato cada vez que se come um novo alimento, substitui o pão, que nessa época não era usado ao jantar. Ao lado do escaldado, e no centro da mesa, vê-se a insossa galinha com arroz, escoltada porém por um prato de verduras cozidas extremamente apimentado. Perto dela brilha uma resplendente pirâmide de laranjas perfumadas, logo cortadas em quartos e distribuídas a todos os convivas para acalmar a irritação da boca já cauterizada pela pimenta. Felizmente esse suco balsâmico, acrescido a cada novo alimento, refresca a mucosa, provoca a salivação e permite apreciar-se em seu devido valor a natural suculência do assado. Os paladares estragados, para os quais um quarto de laranja não passa de um luxo habitual, acrescentam sem escrúpulo ao assado o molho, preparação feita a frio com a malagueta esmagada simplesmente no vinagre, prato permanente e de rigor para o brasileiro de todas as classes. Finalmente o jantar se completa com uma salada inteiramente recoberta de enormes fatias de cebola crua e de azeitonas escuras e rançosas (tão apreciadas em Portugal de onde vêm, assim como o azeite de tempero que tem o mesmo gosto detestável). A esses pratos, sucedem, como sobremesa, o doce de arroz frio, excessivamente salpicado de canela, o queijo de Minas, e, mais recentemente, diversas espécies de queijos holandeses e ingleses; as laranjas tornam a aparecer com as outras frutas do país: ananases, maracujás, pitangas, melancias, jambos, jabuticabas, mangas, cajás, frutas-do-conde etc.
Os vinhos de Madeira e do Porto são servidos em cálices, com os quais se saúdam cada vez que bebem; além disso um enorme copo, que os criados têm o cuidado de manter sempre cheio de água pura e fresca, serve a todos os convivas para beberem à vontade. A refeição termina com o café.
Passando-se ao humilde jantar do pequeno negociante e sua família, vê-se, com espanto, que se compõe apenas de um miserável pedaço de carne-seca, de três a quatro polegadas quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no a grande água com um punhado de feijões pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a vantagem de não fermentar no estômago. Cheio o prato com esse caldo, no qual nadam alguns feijões, joga-se nele uma grande pitada de farinha de mandioca, a qual, misturada com os feijões esmagados, forma uma pasta consistente que se come com a ponta da faca arredondada, de lâmina larga. Essa refeição simples, repetida invariavelmente todos os dias e cuidadosamente escondida dos transeuntes, é feita nos fundos da loja, numa sala que serve igualmente de quarto de dormir. O dono da casa come com os cotovelos fincados na mesa; a mulher com o prato sobre os joelhos, sentada à moda asiática na sua marquesa, e as crianças, deitadas ou de cócoras nas esteiras, se enlambuzam à vontade com a pasta comida nas mãos. Mais abastado, o negociante acrescenta à refeição o lombo de porco assado ou o peixe cozido na água com um raminho de salsa, um quarto de cebola e três ou quatro tomates. Mas, para torná-lo mais apetitoso, mergulha cada bocado no molho picante; completam a refeição bananas e laranjas. Bebe-se água unicamente. As mulheres e crianças não usam colheres nem garfos; comem todos com os dedos.
Os mais indigentes e os escravos nas fazendas alimentam-se com dois punhados de farinha-seca, umedecidos na boca pelo sumo de algumas bananas ou laranjas. Finalmente, o mendigo quase nu e repugnante de sujeira, sentado do meio-dia às três à porta de um convento, engorda sossegadamente, alimentado pelos restos que a caridade lhe prodigaliza. Tal é a série de jantares da cidade, após os quais toda a população repousa.

Jean Baptiste Debret

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