5 de dezembro de 2017

O pão que o diabo amassou


Marcelina Maria foi empurrada para o pacto demoníaco por força dos maus tratos que recebia do patrão. Este exigia grande presteza na execução das tarefas domésticas, e a escrava sentia-se incapaz de dar conta de tudo no prazo exigido; então, "entrou no pensamento de se valer do demônio para a ajudar naquele trabalho". Raivosa e "com ânimo de ser feiticeira" começou a chamar pelo demônio enquanto amassava dois alqueires de pão de trigo. Não conseguia fazê-lo direito, pois estava "muito debilitada e de pouco sangrada". Eis que, de repente, viu que o pão se amassava e levedava, e num instante pôde estendê-lo e colocá-lo no forno para assar. Desconfiada, "não quis comer dele, e bem conhecia que só por arte do demônio se podia amassar e levedar em tão pouco tempo". Marcelina não via a pessoa que amassava o pão, "mas via muito bem que (...) estava fazendo grande bulha, como que era bem amassado". Quando começou a pensar no que faria para terminar o serviço no tempo determinado pelo senhor, ouviu uma voz que dizia: "Se quiseres vai buscar ao Campo Grande que lá te ensinarão o que hás de fazer para tudo obrares depressa". Cheia de medo, os cabelos arrepiados, o corpo trêmulo, ficava olhando para imagens santas, sem saber o que fazer; por fim, à meia-noite, decidiu-se a ir encontrar o demo. Achou aberta a porta da casa, apesar do adiantado da hora e de estarem todos dormindo. "E ficou entendendo que o demônio lhe pôs a porta franca e pronta para ir buscá-lo, e para este efeito tirou as contas do pescoço e saiu só com a sua saia e capinha de baeta, e endireitando para o Campo Grande pela rua de São José, não encontrou pessoa alguma, nem carruagem ou besta; e, antes de chegar à Igreja de São José, ao pé de umas casas nobres que ficam à mão direita, viu um vulto muito alto, e lhe parecia que tinha mais altura do que ela, na figura de um bode, não sabe dizer de que cor, porque tanto que o viu, o corpo se lhe arrepiou, e o lume lhe fugiu dos olhos, e ouviu ao dito vulto articular estas palavras - Aonde vais -, e se levantou logo um pé de vento tão grande que ela cuidava a deitava por terra". Aterrorizada, Marcelina Maria respondeu que "ia buscar umas cousas boas", e resolveu voltar correndo para a casa de seu senhor. Na correria da volta, achou que a estavam seguindo; entretanto, não via ninguém. Encontrou aberta a porta, como quando saíra. Mal entrou, ela deu uma grande pancada, fechando-se. Por várias noites, a escrava ficou insone, até que resolveu trazer para a cama a imagem de Cristo na cruz, abraçando-se a ela. Desde então, passou a dormir com sossego.

Laura de Mello e Souza

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