26 de outubro de 2016

Polidez


A polidez faz pouco caso da moral, e a moral da polidez. Um nazista polido em que altera o nazismo? Em que altera o horror? Em nada, é claro, e a polidez está bem caracterizada por esse nada. Virtude meramente formal, virtude de etiqueta, virtude de aparato! A polidez é a aparência, pois, de uma virtude, e somente a aparência.
Se a polidez é um valor, o que não se pode negar, é um valor ambíguo, em si insuficiente - pode encobrir tanto o melhor, como o pior - e, como tal, quase suspeito. Esse trabalho sobre a forma deve ocultar alguma coisa, mas o quê? É um artifício, e desconfiamos dos artifícios. Diderot evoca em algum lugar a "polidez insultante" dos grandes, e também deveríamos evocar aquela, obsequiosa ou servil, de muitos pequenos. Seriam preferíveis o desprezo sem frases e a obediência sem mesuras.
A polidez torna o homem mau mais odiável porque denota nele uma educação sem a qual sua maldade, de certa forma, seria desculpável. O canalha polido é o contrário de uma fera, e ninguém quer mal às feras. É o contrário de um selvagem, e os selvagens são desculpados. É o contrário de um bruto crasso, grosseiro, inculto, que decerto é assustador, mas cuja violência nativa e bitolada pelo menos poderia ser explicada pela incultura. O canalha polido não é uma fera, não é um selvagem, não é um bruto; ao contrário, é civilizado, educado, bem criado e, com isso, dir-se-ia, não tem desculpa. Quem pode saber se o grosseirão agressivo é mau ou simplesmente mal-educado? No caso do torturador seleto, ao contrário, não há dúvida. Como o sangue se vê melhor nas luvas brancas, o horror se mostra melhor quando é cortês. Num ser grosseiro, podemos acusar seu lado animal, a ignorância, a incultura, pôr a culpa numa infância devastada ou no fracasso de uma sociedade. Num ser polido, não. A polidez é, nesse sentido, como que uma circunstância agravante, que acusa diretamente o homem, o povo ou o indivíduo, e a sociedade, não em seus fracassos, que poderiam servir de desculpa, mas em seus sucessos.
O recém-nascido não tem moral, nem pode ter. Tampouco o bebê e, por um bom tempo, a criança. O que esta descobre, em compensação, e bem cedo, são as proibições. "Não faça isso: é sujo, é ruim, é feio, é maldade..." Ou: "É perigoso", e a criança logo saberá diferenciar entre o que é mau (o erro) e o que faz mal (o perigo). O erro é o mal propriamente humano, o mal que não faz mal (pelo menos a quem o faz), o mal sem perigo imediato ou intrínseco. Mas então por que proibi-lo? Porque é assim, porque é sujo, feio, maldade... O fato precede o direito, para a criança, ou antes, o direito é apenas um fato como outro qualquer. Há o que é permitido e o que é proibido, o que se faz e o que não se faz. Bem? Mal? A regra basta, ela precede o julgamento e o funda.
Não se poderia, diz Kant, deduzir o que se deve fazer do que se faz. No entanto, é a isso que a criança é obrigada, durante seus primeiros anos, e é unicamente por isso que ela se torna humana. "O homem só pode tornar-se homem pela educação", reconhece por sinal Kant, "ele é apenas o que a educação faz dele", e é a disciplina que primeiro "transforma a animalidade em humanidade". Não poderíamos dizer melhor. O uso é anterior ao valor, a obediência ao respeito, e a imitação ao dever. A polidez, por conseguinte ("isso não se faz"), é anterior à moral ("isso não se deve fazer"), a qual só se constituirá pouco a pouco, como uma polidez interiorizada, livre de aparências e de interesses, toda concentrada na intenção (com a qual a polidez nada tem a ver).
Todos os pais sabem disso, e é o que chamam educar seus filhos. Sei muito bem que a polidez não é tudo, nem o essencial. No entanto, o fato é que ser bem-educado, na linguagem corrente, é antes de tudo ser polido, o que já diz muito sobre a polidez. Repreender os filhos mil vezes (o que estou dizendo, mil vezes!: muito mais...) para que digam “por favor”, “obrigado”, “desculpe” é coisa que nenhum de nós faria – salvo algum maníaco ou esnobe -, se se tratasse apenas de polidez. Mas o respeito se aprende assim, com esse treinamento. A palavra é desagradável, sei bem, mas quem poderia dispensar a coisa? O amor não basta para educar os filhos, nem mesmo para torná-los amáveis.
Inclusive, há pessoas em que a polidez incomoda, por causa de uma perfeição inquieta. “Polido demais para ser honesto”, diz-se então, pois a honestidade às vezes impõe ser desagradável, chocar, trombar. Mesmo honestos, aliás, muitos ficarão a vida toda como que prisioneiros de suas boas maneiras, só se mostrando aos outros através da vidraça – nunca totalmente transparente – da polidez, como se tivessem confundido de uma vez por todas a verdade e o decoro. No estilo certinho, como se diz hoje em dia, há muito disso. A polidez, se levada por demais a sério, é o contrário da autenticidade. Os certinhos são como crianças grandes bem-comportadas demais, prisioneiras das regras, enganadas quanto aos usos e às conveniências. Faltou-lhes a adolescência, graças à qual nos tornamos homem ou mulher – a adolescência que remete a polidez ao irrisório que lhe é próprio, a adolescência que está pouco ligando para os usos, a adolescência que só ama o amor, a verdade e a virtude, a bela, a maravilhosa, a incivil adolescência! Adultos, eles serão mais indulgentes e mais sensatos. Mas, enfim, se é absolutamente necessário escolher, e imaturidade por imaturidade, é melhor, moralmente falando, um adolescente prolongado do que uma criança obediente demais para crescer – é melhor ser honesto demais para ser polido do que polido demais para ser honesto!
A polidez não é tudo, é quase nada. Mas o homem, também, é quase um animal.

André Comte-Sponville

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