2 de abril de 2017

Um dia em Recife


Como tudo parece resolvido entre os chefes monarquistas e patriotas, estamos-nos preparando para deixar Pernambuco, e não sem tristeza, porque fomos tratados amavelmente pelos portugueses e recebidos com hospitalidade pelos nossos compatriotas. Fomos à terra para obter coisas necessárias ou agradáveis para nossa viagem adiante. Entre as últimas comprei excelentes doces, que são feitos no interior e trazidos para o mercado em belos barriletes de madeira, cada um contendo seis ou oito libras. É espantoso ver a carga transportada de duzentas ou trezentas milhas de distância pelos cavalos pequenos e fracos, mas rápidos, que há na terra. Os cavalos de carga não são ferrados, tal como os de montaria: os últimos são em quase toda parte treinados num passo rápido, fácil, mas não muito agradável no primeiro momento para os que estão acostumados com os cavalos ingleses. Vi e provei hoje a carne seca, charque, da América do Sul Espanhola. Parece, quando pende em mantas nas portas das lojas, com feixes de couro grosso em tiras. Prepara-se cortando a carne em tiras largas, extraindo os ossos, salgando levemente, comprimindo e secando ao ar. Assim bem poderia servir de recheio dos selins dos bucaneiros, já que a tradição diz que eles arrumavam a carne sob as selas. Como quer que seja, a carne é gostosa. O modo comum de usá-la aqui é de parti-la em pedacinhos e cozê-la na sopa de mandioca, que é o principal alimento da gente pobre e dos escravos.
Após terminar minhas compras, fui procurar uma família portuguesa, e como se fosse a primeira casa portuguesa em que ia entrar, estava curiosa em verificar a diferença entre ela e as casas inglesas daqui. A construção e a distribuição das peças são as mesmas. O salão só diferia em ser mais bem mobiliado e com todos os artigos ingleses, até mesmo um belo piano Broadwood. Mas a sala de jantar era completamente estranha. O solo estava forrado com um tecido estampado e as paredes cheias de gravuras inglesas e pinturas chinesas, sem distinção de assunto ou tamanho. Numa ponta da sala havia uma mesa comprida, coberta com uma caixa de vidro, na qual havia uma peça religiosa de cera: um presépio completo, com os anjos, os três reis, musgo, flores artificiais, conchas e contas, tudo envolvido em gaze e tarlatana de seda, semeado de ouro e prata, e com Santo Antônio e São Cristóvão de guarda, à direita e à esquerda. O resto da mobília  consistia em cadeiras e mesas comuns e uma espécie de consolo ou aparador. Do teto pendiam nove gaiolas de pássaros, cada qual com seu ocupante. Os canários, as patativas, rivais dos primeiros na beleza do canto, e as belas viúvas, eram os favoritos. Em gaiolas maiores, num quarto de passagem, havia mais papagaios e periquitos do que eu poderia julgar agradável numa casa. Mas são bem educados e raramente gritam juntos. Não estávamos sentados por muito tempo na sala de jantar quando passaram em volta biscoitos, bolo, vinho e licores, os últimos em pequenos cálices. Ofereceram-nos em seguida um copo d'água e fomos instados a prová-la, dizendo-nos que era a melhor do Recife. Provém de uma fonte no jardim do convento de Jerusalém, a duas milhas da cidade e o único cano dessa fonte dirige-se ao jardim de um convento de freiras daqui. Soube pela senhora que as jarras porosas para refrescar a água que encontramos aqui são todas feitas na vizinhança da Bahia, e que não há indústria aqui, exceto de algodão grosso para vestimenta de escravos. O ar e as maneiras da família que visitamos, ainda que não fossem nem ingleses nem franceses, eram de perfeita educação, e os vestidos mais belos que da Europa civilizada, com a diferença que os homens usavam jaquetas de algodão em vez de casacos de casimira e estavam sem colarinho. Quando saem, porém, vestem-se como os ingleses.

Maria Graham  

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