Leitora manda boneca para recall e não a recebe de volta. "Como explicar para uma criança que seus brinquedos foram embora há três meses e não voltaram?"
"MINHA QUERIDA DONA: quem lhe escreve sou eu, a sua
fiel e querida boneca, que você não vê há três meses. Sei que você sente muitas
saudades, porque eu também sinto saudades de você. Lembro de você me pegando no
colo, me chamando de filhinha, me dando papinha... Você era, e é, minha
mãezinha querida, e é por isso que estou lhe mandando esta carta, por meio do
cara que assina esta coluna e que, sendo escritor, acredita nas coisas da
imaginação.
Posso lhe dizer, querida, que vivi uma tremenda aventura,
uma aventura que em vários momentos me deixou apavorada. Porque tive de viajar
para o distante país do recall.
Aposto que você nem sabia da existência desse lugar; eu,
pelo menos, não sabia. Para lá fui enviada. Não só eu: bonecas defeituosas,
ursinhos idem, eletrodomésticos que não funcionavam e peças de automóvel
quebradas. Nós todos ali, na traseira de um gigantesco caminhão que andava,
andava sem parar.
Finalmente chegamos, e ali estávamos, no misterioso e, para
mim, assustador país do recall. Um homem nos recebeu e anunciou, muito
secamente, que o nosso destino em breve seria traçado: as bonecas (e os
ursinhos, e outros brinquedos, e objetos vários) que tivessem conserto seriam
consertados e mandados de volta para os donos; quanto tempo isso levaria era
imprevisível, mas três meses era o mínimo. Uma boneca que estava do meu lado, a
Liloca, perguntou, com os olhos arregalados, o que aconteceria a quem não
tivesse conserto. O homem não disse nada, mas seu sorriso sinistro falava por
si.
Passamos a noite num enorme pavilhão destinado especialmente
às bonecas. Éramos centenas ali, algumas com probleminhas pequenos (um braço
fora do lugar, por exemplo), outras já num estado lamentável. Estava muito
claro que para várias de nós não haveria volta.
Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca - sim,
querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha nos unido.
Outras bonecas juntaram-se a nós e logo formamos um grande grupo. Estávamos
preocupadas com o que poderia nos suceder.
De repente a Liloca gritou: "Mas gente, nós não somos
obrigados a aceitar isso! Vamos fazer alguma coisa!". Nós a olhamos,
espantadas: fazer alguma coisa? Mas fazer o quê?
Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos
apossar do país do recall.
No começo, aquilo nos pareceu absurdo. Mas Liloca sabia do
que estava falando. A mãe da dona dela tinha sido uma militante revolucionária
e sempre falava nisso, na necessidade de mudar o mundo, de dar o poder aos mais
fracos.
Ora, dizia Liloca, ninguém mais fraco do que nós, pobres,
desamparados e defeituosos brinquedos. Não deveríamos aguardar resignadamente
que decidissem o que fazer com a gente.
De modo, querida dona, que estamos aqui preparando a
revolução. Breve estaremos governando o país do recall. Mas não se preocupe, eu
a convidarei para uma visita. Você poderá vir a qualquer hora. E não precisará
de recall para isso.”
Moacyr Scliar
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