Não fazia ainda dois meses desde que eu havia me mudado da minha quitinete, em São Paulo, onde morei durante três anos, para a casa do meu pai, no interior do estado: mais exatamente, em Araraquara, uma cidade pouco verticalizada e com cerca de duzentos mil habitantes que conseguem a duras penas sobreviver sob o intenso bombardeio de um sol causticante.
Pois então... A casa do meu pai está entranhada em algum ponto dentro de um emaranhado de casas que, suspeito eu, faziam há décadas parte de uma única e mesma casa no centro velho da cidade. O retalhamento desse lote urbano foi, sem dúvida alguma, feito às pressas e sem o mínimo planejamento urbanístico. Ou seja, foi feito nas coxas. O resultado arquitetônico prático disso é que a casa do meu pai está cercada de telhados. Os muros que separam as casas são baixos e a paisagem resultante é a de um muro de telhas inclinadas por todos os lados. Até aí, tudo bem, pois esse cenário sem graça fazia parte do ambiente que sabia que teria forçosamente que chamar de “lar”.
Num fim de tarde, em que agastara-me excessivamente matutando se minha mudança de São Paulo pra Araraquara tinha sido a decisão certa ou não (não foi), saí do meu tugúrio com o intento de fumar um cigarro no quintal, todo ele cercado de telhas. O ar puro começou a restabelecer-me o ânimo. O céu estava lindo, com poucas nuvens de chuva e de um azul de conto de fadas. Enquanto eu filosofava ali no quintal sobre uma coisa qualquer, percebi que não estava sozinho. Na verdade, senti com o rabo dos olhos ou com o tal do sexto sentido que estava sendo observado. Decidido a esclarecer a questão, virei minha cabeça na direção do que parecia ser um intruso. Vi um gato no telhado.
Um gato concentrado, receoso, potencialmente arisco. Ele estava com os olhos cravados em mim, estudando-me, tentando descobrir se eu representava uma ameaça ou, quem sabe, se eu era um desses humanos babacas que correm para suas cozinhas e voltam trinta segundos depois com uma tigelinha transbordante de leite de vaca tipo C. Aquele gato não parecia exatamente um gato domesticado. Algo naquela sua postura e estudada hesitação diziam-me que aquele gato era cem por cento selvagem. E havia um sinal externo, no tronco do gato, que corroborava minha intuição. Eram suas costelas, que estavam todas bem à mostra sob o fino manto de pele e pêlos, porque gordura em seu corpo não havia. Aquele gato era um selvagem, que não sabia o significado da palavra ração e sobrevivia caçando ratos, insetos e pássaros engaiolados.
Instantes depois em que nossos olhos, pela primeira vez, se encontraram em mútua observação, o gato arriscou desfilar na passarela e percorreu retilineamente uns três metros de telhado, a uns três metros do local onde me encontrava. O jeito como ele caminhou e me olhou diziam claramente: “eu estou em casa, em qualquer lugar estou em casa, porque sou gato, mas quem é você, estranho?”
Gostei dessa postura. Considerei em meus pensamentos que o dito gato bem poderia ser um anarquista por natureza, já que havia defendido galhardamente com sua postura e seu olhar seu direito natural a zanzar por aquelas telhas e a ter sua intimidade respeitada. Mas, logo em seguida, desprezei tal ideia, pois os gatos são, na verdade, extremamente egoístas. Nunca amaldiçoei os gatos por isso. Afinal, eles nasceram gatos, não tiveram escolha. Por comparação, cheguei à conclusão de que os cachorros sim podem ser republicanos, já que naturalmente são predispostos para o convívio em bando, quer dizer, em sociedade. Os gatos seriam, antes, monarquistas, pois cada gato que se vê por aí, atravessando a rua sorrateiramente, avançando lentamente sobre um muro, estraçalhando os sacos de lixo nas ruas, atrapalhando nosso sono com suas brigas ou trepadas, esses gatos... não passam de uns pretendentes a rei! Por isso disputam territórios e fêmeas, igualzinho aos humanos que reagem às ameaças com tapas e bombas. Mas, refleti, se cada gato quer o território e as fêmeas do vizinho, deve lutar por eles. E o gato que já era dono do seu reino e conquista à força, como bem nos demonstra a história da civilização ocidental, o território de um seu concorrente, automaticamente começa a aspirar, e com razão, ao título de imperador. O fato é que nunca antes havia recebido a visita de uma corte, seja de reis e príncipes herdeiros humanos do mundo, nem mesmo a visita de um gato no telhado da minha casa. E a explicação desse fenômeno, de tão simples, chega a ser risível: até mudar-me para a casa do meu pai, eu sempre havia morado em apartamento...
Após transformar mentalmente, num átimo, a maioria das minhas suposições em fatos consolidados e, com os olhos ainda cravados nos olhos do gato, fiz o que qualquer humano que se encontrasse em minha situação faria: humanizei o gato. Sim, simples assim. Dei-lhe um nome. Todas as pessoas relativamente inteligentes sabem que gato não tem nome. Você pode dar um nome a ele. Mas, se os donos de cachorros podem se contentar chamando seus amiguinhos por um nome decorado e processado no cérebro do cão com a mensagem “o chefe chama”, os donos de gatos não podem desfrutar desse prazer. Gato nenhum decora o nome que lhe damos, porque ele é gato, não cachorro. Eles são interesseiros, aparecem quando querem comida, sombra para dormir ou carícias em seus pêlos. Caso contrário, desaparecem sem deixar vestígios, sem uma carta de despedida nem nada. O gato some. E não adianta chamar-lhe de “campeão” que ele vai achar você um ridículo e fingir que não é com ele. Afinal, todo gato sente-se um campeão só por ser gato. Parece coisa de argentino, mas é coisa dos felinos.
Apesar disso tudo, humano que sou, humanizei: “batizei”, imprimi àquele ser um nome que não perguntei ao ser se ele aceitava ter (porque sim, o homem também é, por natureza, um ser imperial, embora a cultura possa eventualmente ganhar status de verdade republicana se, como diziam Rousseau e Montesquieu, o indivíduo sacrificar parcialmente sua liberdade individual em prol do bem comum). Graças à sua magreza de costelas à vista, lembrei-me de uma fotografia do Kevin Carter, que ganhou o renomado Prêmio Pulitzer de Fotografia Jornalística. A fotografia mostrava uma criança etíope, na verdade uma caricatura de criança, um conjunto de ossos que mal conseguia manter-se em pé. Incapacitada de sustentar o peso de sua própria cabeça, a criança encontrava-se deitada, em busca de uma posição fetal. Estava desesperada e pedia ajuda. Mas não tinha forças para falar. Na foto, pouco atrás da criança devorada pela fome, encontrava-se um abutre. Ele decerto estava só começando a ficar com fome. E por que não pousar ali, ao lado daquela criança faminta, que demorará ainda umas duas ou três horas para finalmente morrer? Foi o que o pássaro fez. Pousou, esperou, antevendo o prazer de bicar aquela pele sem carne.
Muito bem, a fotografia da qual havia me recordado decidiu-me: teria que batizar o gato com um nome etíope. Mas, tendo em vista a atitude imperial concernente aos gatos, tinha que ser um nome etíope e imperial. Tiberius Aethiopicus: um imperador romano que nunca existiu, mas que em defesa da boa sonoridade dos nomes inventados, resolvi inventar. Tiberius, um nome de imperador, sem sombra de dúvida. O Aethiopicus era para lhe adornar com um manto invisível e imperial a curvatura das suas costelas.
Foi intrigante. Após desfilar retilineamente sobre aqueles três metros de telha, ele se escondeu atrás da caixa d’água de um vizinho. Instantes depois, sentindo-se bem entrincheirado, o gato partiu para o ataque: colocou sua cabeça à mostra, numa postura de general, avaliando o terreno inimigo e decidindo-se por uma estratégia combativa. As orelhas eriçadas, qual sonar, captariam qualquer movimento que eu esboçasse. Os gatos são espertos.
De repente, Tiberius recolheu sua fronte e desapareceu. Mais uns instantes se passaram e, silenciosamente, ele reapareceu e aproximou-se por um telhado bem próximo. Ele estava a um metro de mim. Entre eu e ele apenas um muro baixo. Ele parou, fixou seus olhos nos meus e lentamente começou a inclinar a cabeça para um lado. Não sei se foi uma atitude sentimentalóide da minha parte, mas interpretei aquele inclinar de cabeça como um carinho, uma espécie de manifesto de paz entre os povos e as espécies do planeta.
Como humano, desarmei-me em relação a ele. Ele, felinamente, desarmou-se também. Ficamos então a contemplar-nos um ao outro por um longo minuto e meio, como quem encontra o cadáver de um E.T. e não sabe muito bem o que fazer com ele. Nesse instante, formou-se um pacto, espontaneamente. Tiberius era bem-vindo. Se aparecesse eu lhe chamaria pra tomar um café, ou seja, serviria leite de vaca tipo C numa tigelinha. Caso contrário podia tentá-lo com carne e um tapete bem felpudo pra dormir.
Não cheguei a fazer isso. O fato é que Tiberius e eu nunca mais nos vimos. Eu até gostaria de domesticá-lo, adotá-lo... Mas Tiberius é um gato selvagem, e acha que esses cuidados que estou predisposto a lhe oferecer são, em essência, coisa de veado. Não quer saber de nada disso. Sumiu. Talvez esteja, nesse instante, imperando sobre outro quarteirão, talvez esteja morrendo de fome, com um urubu por perto.
Pois então... A casa do meu pai está entranhada em algum ponto dentro de um emaranhado de casas que, suspeito eu, faziam há décadas parte de uma única e mesma casa no centro velho da cidade. O retalhamento desse lote urbano foi, sem dúvida alguma, feito às pressas e sem o mínimo planejamento urbanístico. Ou seja, foi feito nas coxas. O resultado arquitetônico prático disso é que a casa do meu pai está cercada de telhados. Os muros que separam as casas são baixos e a paisagem resultante é a de um muro de telhas inclinadas por todos os lados. Até aí, tudo bem, pois esse cenário sem graça fazia parte do ambiente que sabia que teria forçosamente que chamar de “lar”.
Num fim de tarde, em que agastara-me excessivamente matutando se minha mudança de São Paulo pra Araraquara tinha sido a decisão certa ou não (não foi), saí do meu tugúrio com o intento de fumar um cigarro no quintal, todo ele cercado de telhas. O ar puro começou a restabelecer-me o ânimo. O céu estava lindo, com poucas nuvens de chuva e de um azul de conto de fadas. Enquanto eu filosofava ali no quintal sobre uma coisa qualquer, percebi que não estava sozinho. Na verdade, senti com o rabo dos olhos ou com o tal do sexto sentido que estava sendo observado. Decidido a esclarecer a questão, virei minha cabeça na direção do que parecia ser um intruso. Vi um gato no telhado.
Um gato concentrado, receoso, potencialmente arisco. Ele estava com os olhos cravados em mim, estudando-me, tentando descobrir se eu representava uma ameaça ou, quem sabe, se eu era um desses humanos babacas que correm para suas cozinhas e voltam trinta segundos depois com uma tigelinha transbordante de leite de vaca tipo C. Aquele gato não parecia exatamente um gato domesticado. Algo naquela sua postura e estudada hesitação diziam-me que aquele gato era cem por cento selvagem. E havia um sinal externo, no tronco do gato, que corroborava minha intuição. Eram suas costelas, que estavam todas bem à mostra sob o fino manto de pele e pêlos, porque gordura em seu corpo não havia. Aquele gato era um selvagem, que não sabia o significado da palavra ração e sobrevivia caçando ratos, insetos e pássaros engaiolados.
Instantes depois em que nossos olhos, pela primeira vez, se encontraram em mútua observação, o gato arriscou desfilar na passarela e percorreu retilineamente uns três metros de telhado, a uns três metros do local onde me encontrava. O jeito como ele caminhou e me olhou diziam claramente: “eu estou em casa, em qualquer lugar estou em casa, porque sou gato, mas quem é você, estranho?”
Gostei dessa postura. Considerei em meus pensamentos que o dito gato bem poderia ser um anarquista por natureza, já que havia defendido galhardamente com sua postura e seu olhar seu direito natural a zanzar por aquelas telhas e a ter sua intimidade respeitada. Mas, logo em seguida, desprezei tal ideia, pois os gatos são, na verdade, extremamente egoístas. Nunca amaldiçoei os gatos por isso. Afinal, eles nasceram gatos, não tiveram escolha. Por comparação, cheguei à conclusão de que os cachorros sim podem ser republicanos, já que naturalmente são predispostos para o convívio em bando, quer dizer, em sociedade. Os gatos seriam, antes, monarquistas, pois cada gato que se vê por aí, atravessando a rua sorrateiramente, avançando lentamente sobre um muro, estraçalhando os sacos de lixo nas ruas, atrapalhando nosso sono com suas brigas ou trepadas, esses gatos... não passam de uns pretendentes a rei! Por isso disputam territórios e fêmeas, igualzinho aos humanos que reagem às ameaças com tapas e bombas. Mas, refleti, se cada gato quer o território e as fêmeas do vizinho, deve lutar por eles. E o gato que já era dono do seu reino e conquista à força, como bem nos demonstra a história da civilização ocidental, o território de um seu concorrente, automaticamente começa a aspirar, e com razão, ao título de imperador. O fato é que nunca antes havia recebido a visita de uma corte, seja de reis e príncipes herdeiros humanos do mundo, nem mesmo a visita de um gato no telhado da minha casa. E a explicação desse fenômeno, de tão simples, chega a ser risível: até mudar-me para a casa do meu pai, eu sempre havia morado em apartamento...
Após transformar mentalmente, num átimo, a maioria das minhas suposições em fatos consolidados e, com os olhos ainda cravados nos olhos do gato, fiz o que qualquer humano que se encontrasse em minha situação faria: humanizei o gato. Sim, simples assim. Dei-lhe um nome. Todas as pessoas relativamente inteligentes sabem que gato não tem nome. Você pode dar um nome a ele. Mas, se os donos de cachorros podem se contentar chamando seus amiguinhos por um nome decorado e processado no cérebro do cão com a mensagem “o chefe chama”, os donos de gatos não podem desfrutar desse prazer. Gato nenhum decora o nome que lhe damos, porque ele é gato, não cachorro. Eles são interesseiros, aparecem quando querem comida, sombra para dormir ou carícias em seus pêlos. Caso contrário, desaparecem sem deixar vestígios, sem uma carta de despedida nem nada. O gato some. E não adianta chamar-lhe de “campeão” que ele vai achar você um ridículo e fingir que não é com ele. Afinal, todo gato sente-se um campeão só por ser gato. Parece coisa de argentino, mas é coisa dos felinos.
Apesar disso tudo, humano que sou, humanizei: “batizei”, imprimi àquele ser um nome que não perguntei ao ser se ele aceitava ter (porque sim, o homem também é, por natureza, um ser imperial, embora a cultura possa eventualmente ganhar status de verdade republicana se, como diziam Rousseau e Montesquieu, o indivíduo sacrificar parcialmente sua liberdade individual em prol do bem comum). Graças à sua magreza de costelas à vista, lembrei-me de uma fotografia do Kevin Carter, que ganhou o renomado Prêmio Pulitzer de Fotografia Jornalística. A fotografia mostrava uma criança etíope, na verdade uma caricatura de criança, um conjunto de ossos que mal conseguia manter-se em pé. Incapacitada de sustentar o peso de sua própria cabeça, a criança encontrava-se deitada, em busca de uma posição fetal. Estava desesperada e pedia ajuda. Mas não tinha forças para falar. Na foto, pouco atrás da criança devorada pela fome, encontrava-se um abutre. Ele decerto estava só começando a ficar com fome. E por que não pousar ali, ao lado daquela criança faminta, que demorará ainda umas duas ou três horas para finalmente morrer? Foi o que o pássaro fez. Pousou, esperou, antevendo o prazer de bicar aquela pele sem carne.
Muito bem, a fotografia da qual havia me recordado decidiu-me: teria que batizar o gato com um nome etíope. Mas, tendo em vista a atitude imperial concernente aos gatos, tinha que ser um nome etíope e imperial. Tiberius Aethiopicus: um imperador romano que nunca existiu, mas que em defesa da boa sonoridade dos nomes inventados, resolvi inventar. Tiberius, um nome de imperador, sem sombra de dúvida. O Aethiopicus era para lhe adornar com um manto invisível e imperial a curvatura das suas costelas.
Foi intrigante. Após desfilar retilineamente sobre aqueles três metros de telha, ele se escondeu atrás da caixa d’água de um vizinho. Instantes depois, sentindo-se bem entrincheirado, o gato partiu para o ataque: colocou sua cabeça à mostra, numa postura de general, avaliando o terreno inimigo e decidindo-se por uma estratégia combativa. As orelhas eriçadas, qual sonar, captariam qualquer movimento que eu esboçasse. Os gatos são espertos.
De repente, Tiberius recolheu sua fronte e desapareceu. Mais uns instantes se passaram e, silenciosamente, ele reapareceu e aproximou-se por um telhado bem próximo. Ele estava a um metro de mim. Entre eu e ele apenas um muro baixo. Ele parou, fixou seus olhos nos meus e lentamente começou a inclinar a cabeça para um lado. Não sei se foi uma atitude sentimentalóide da minha parte, mas interpretei aquele inclinar de cabeça como um carinho, uma espécie de manifesto de paz entre os povos e as espécies do planeta.
Como humano, desarmei-me em relação a ele. Ele, felinamente, desarmou-se também. Ficamos então a contemplar-nos um ao outro por um longo minuto e meio, como quem encontra o cadáver de um E.T. e não sabe muito bem o que fazer com ele. Nesse instante, formou-se um pacto, espontaneamente. Tiberius era bem-vindo. Se aparecesse eu lhe chamaria pra tomar um café, ou seja, serviria leite de vaca tipo C numa tigelinha. Caso contrário podia tentá-lo com carne e um tapete bem felpudo pra dormir.
Não cheguei a fazer isso. O fato é que Tiberius e eu nunca mais nos vimos. Eu até gostaria de domesticá-lo, adotá-lo... Mas Tiberius é um gato selvagem, e acha que esses cuidados que estou predisposto a lhe oferecer são, em essência, coisa de veado. Não quer saber de nada disso. Sumiu. Talvez esteja, nesse instante, imperando sobre outro quarteirão, talvez esteja morrendo de fome, com um urubu por perto.
André Faustino
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