23 de outubro de 2016

Eugenia


A palavra eugenia é de origem grega (eugéneia) e significa “bem nascido(a)”. Nascer bem, na Grécia Antiga, não era vir ao mundo através de um parto sem complicações, era nascer em uma família nobre, isto é: o novo serzinho dedicar-se-ia à ciência ou às artes sem se preocupar em demasia com o trabalho, que era obrigação dos pobres mal nascidos e escravos (que, por serem escravos, eram considerados meio humanos). Entretanto, a partir dos estudos evolucionistas de Darwin, no século XIX, seu primo Francis Galton deu ao termo eugenia seu significado moderno: uma ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana ou, sem rodeios, a “ciência dos bons genes”. Na prática, essa ciência visava a aperfeiçoar a população humana por meio da seleção de características hereditárias desejáveis. Há duas correntes: a eugenia negativa, cuja proposta é obter o aperfeiçoamento desestimulando a reprodução dos portadores de genes defeituosos, e a eugenia positiva, cujo objetivo é o mesmo, mas incentivando a procriação de pessoas geneticamente superiores. A dificuldade é, precisamente, fixar o que é uma pessoa geneticamente superior, sem deixar de levar em conta aspectos não genéticos da vida, como a cultura e o instinto natural de reprodução comum a todos os seres vivos. Sou daqueles que pensam que superioridade e inferioridade são palavras que não se aplicam a qualquer ser vivo. Bem ou mal, o caramujo que vive no meu jardim consegue enfrentar seus problemas e sobreviver tão bem quanto eu e você.
Antes mesmo que, animados por essa ideia eugênica, os nazistas transformassem milhões de não germânicos em cinzas, uma senhora imigrante chamada Annunziata Leo, natural de Roma, dava à luz seu décimo primeiro bebê, na pacata cidade de Araraquara, interior de São Paulo. Esse bebê era minha avó materna. Desconfio que minha bisavó não conhecia a etimologia do termo eugenia e que nem suspeitava o que, em nome dela, povos fariam em busca do seu “aperfeiçoamento” genético. Fosse como fosse, minha avó ganhou o nome de Eugênia.
Duplo engano, como demonstrarei. Engano, em primeiro lugar, porque a família da minha avó era numerosa e vivia numa pequena propriedade rural onde quem não trabalhasse não tinha direito a um lugar na mesa, na hora das refeições. A infância era feita de brinquedos e instrumentos de trabalho, e mais de instrumentos de trabalho do que de brinquedos. O nascimento da minha avó não foi nobre, no sentido grego do termo. Engano, em segundo lugar, porque minha avó herdou o tom de pele do meu bisavô, português da ilha da Madeira, descendente dos mouros do norte da África que dominaram Portugal e Espanha por quase oito séculos e misturaram seus genes com a população preexistente de celtas e romanos (Hispânia) e germânicos (Reino Visigodo). Na Araraquara do início do século XX, ser bem nascido era, em primeiro lugar, ter a pele o mais branca possível: herança da mentalidade escravocrata que ainda existe e que associa ser feliz com não trabalhar. A maioria da população brasileira ainda vivia mais no campo do que na cidade, e ter a pele bronzeada era sinônimo de ser trabalhador pobre. Os ricos mal saíam de casa ou trabalhavam em ambientes fechados, e por isso eram mais brancos. Além do mais era muito comum o uso de pó de arroz pelas mulheres. Uma moça rica dessa época mal saía de casa, embora pudesse se distrair fartamente com aulas de francês, piano ou valsa.
Nessa época, uma menina que se alfabetizasse e terminasse a quarta série, rica ou pobre, já estava pronta para casar. Como não havia controle de natalidade, ter uma boca a menos para alimentar era uma tentação muito grande para os pais e por isso os casamentos eram arranjados sem muitas consultas aos noivos. Com não pouca ansiedade, minha avó esperava ter sua mão pedida por um rapaz pelo qual ela se apaixonara profundamente. O nome dele? Eugênio... Segundo minha avó, Eugênio, que era branquinho e bem nascido no sentido grego do termo, também se apaixonara por ela. O único problema que impedia a realização do casamento era a mãe do Eugênio, que se desdobrou em quatro para afastar Eugênio da minha avó até finalmente convencê-lo a se casar com outra moça, uma qualquer que fosse mais branquinha e bem nascida. Isso de fato aconteceu. Minha avó descobriu o noivado e ficou arrasada, claro. Meses depois ela foi casada com meu avô, e entre os dois sempre existiu muito respeito e nenhum amor. Meu avô não viveu muito (desenvolveu um câncer no estômago) e minha avó nunca mais se interessou por outro homem (trabalhando o tempo todo para sustentar seus cinco filhos, ela mal tinha tempo pra isso...).
Após décadas de viuvez pacata e resignada, minha avó, já idosa, recebeu uma visita inesperada. Era o Eugênio. Minha avó tem o hábito de ler o obituário da cidade todos os dias (como ela diz: “toda semana tem alguém que eu conheço que é premiado!”). Alguns meses antes ela soubera do falecimento da esposa branquinha do Eugênio. O Eugênio apareceu todo atencioso e pimpão, vestido com um terno muito elegante, os poucos cabelos penteados com esmero para trás. Em uma das mãos o Eugênio tinha uma única rosa. Ele ofertou essa rosa à minha avó e, enquanto mantinha o braço esticado com a rosa presa pelos dedos, pediu sua mão em casamento.
Minha avó desconfiou que ele só queria uma nova esposa para lavar as cuecas dele e de pronto recusou o pedido. Secamente. Entre os dois, o portão gradeado que não foi aberto. Voltou-lhe as costas e fez menção de deixa-lo falando sozinho quando algo estalou em sua mente. Veio-lhe à memória o vexame da adolescência. Então, voltou-se e perguntou:
"- Por que você veio me pedir em casamento? Eu não sou escura demais pra você?"
 
André Faustino

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