19 de setembro de 2016

Paternidade


Para mim, sempre foi incompreensível sua total falta de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podia me infligir com palavras e juízos: era como se você não tivesse a menor noção da sua força. Também eu com certeza muitas vezes o magoei com palavras, mas depois sempre o reconheci, isso me doía mas eu não podia me dominar, refrear a palavra, já me arrependia enquanto a pronunciava. Mas você desfechava sem mais as suas, não se condoía de ninguém, nem durante nem depois, contra você estava-se completamente sem defesa.
No entanto, toda a sua educação foi assim. Creio que você tem talento de educador; a uma pessoa da sua índole você certamente teria sido útil através da educação; ela teria percebido a sensatez daquilo que você lhe estava dizendo, não teria se preocupado com nada além disso e dessa maneira levaria as coisas calmamente a termo. Mas para mim, quando criança, tudo o que você bradava era logo mandamento do céu, eu jamais o esquecia, ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o mundo, sobretudo para julgar você mesmo, e nisso o seu fracasso era completo. Como em criança eu ficava junto de você principalmente na hora das refeições, a sua lição principal era em grande parte uma lição sobre o comportamento correto à mesa. O que vinha à mesa precisava ser comido, não era permitido falar sobre a qualidade da comida — mas você frequentemente achava a comida intragável; chamava-a de “grude”, a “besta” (a cozinheira) a tinha estragado. Como você por natureza tinha um apetite vigoroso e uma predileção especial por comer tudo rápido, quente e em grandes bocados, o filho tinha de se apressar, reinava à mesa um silêncio sombrio, interrompido por admoestações: “Primeiro coma, depois fale”, ou “Mais depressa, mais depressa”, ou “Veja: já terminei de comer faz muito tempo”. Não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia. O principal era que se cortasse o pão direito, mas o fato de que você o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente. Era preciso prestar atenção para que não caíssem restos de comida no chão, no final a maioria deles ficava embaixo de você. À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito dos dentes. Por favor, pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles só me oprimiam porque você, o homem tão imensamente decisivo, não atendia ele mesmo aos mandamentos que me impunha. Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência.
 

Franz Kafka

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