A essência da vida constitui-se de matar e de comer. Esse é o grande mistério com o qual os mitos têm de lidar. Os povos primitivos que viviam da caça tinham de reconciliar sua psique a essa condição, pois para eles os animais eram a manifestação dos poderes divinos. E não somente isso: eles vestiam as peles dos animais, faziam as tendas com elas, e, portanto, estavam vivendo da morte o tempo todo, em um mar de sangue. Um mito típico é uma espécie de pacto entre o mundo animal e o mundo humano, no qual fica estabelecido que essa é a via da natureza e que os animais se transformam espontaneamente em suas vítimas. Eles se entregam voluntariamente, entendendo que o rito de gratidão será realizado para devolver suas vidas à fonte da vida, para que outro grupo de animais da mesma espécie possa vir para ser consumido no ano seguinte. Para esses povos os animais são manifestações dos poderes divinos.
Gostariam de ouvir um mito sobre esse tema?
Há uma história que fala de um tempo em que certa tribo enfrentava um inverno desesperador. Os índios tinham um método peculiar de matar uma manada inteira de búfalos que fornecia carne à tribo durante o inverno, assustando os animais e fazendo-os correr até a beira de um grande precipício. Dessa maneira os animais despencavam e se despedaçavam no fundo do abismo, podendo depois ser completada a sua matança. Mas naquele determinado ano, quando os índios assustaram o rebanho e os búfalos correram até a beira do precipício, eles se desviaram para um lado - nenhum deles caiu no abismo. A tribo teve de enfrentar uma situação muito difícil.
Em uma daquelas manhãs uma jovem levantou-se para ir buscar água na fonte para a família. Da sua tenda viu os búfalos lá, bem na beira do precipício, e disse: "Oh! Se vocês despencarem e fornecerem comida ao meu povo durante este inverno, eu me caso com um de vocês". E imediatamente os búfalos começaram a despencar no precipício.
Ela ficou surpresa com isso. Mas sua surpresa foi ainda maior quando um deles chegou e disse: "Tudo bem, garota, vamos embora".
"Ah, não", disse a moça.
"Ah, sim", responde o búfalo. "Veja só o que aconteceu, você fez uma promessa e nós cumprimos a nossa parte."
Assim, ele pegou a jovem pelo braço (é difícil imaginar como um búfalo possa segurar alguém pelo braço, mas ele fez isso) e levou-a consigo, subindo uma colina e depois descendo para a planície.
Na manhã seguinte, a família da moça acorda e todos olhavam e perguntavam: "Onde está Minnehaha?".
O Pai sai, e como é índio, sabe ler nas pegadas o que acontece. Dá uma olhada e diz: "Ela fugiu com um búfalo". Coloca seus mocassins, pega seu arco e flecha e vai procurar a filha que estava entre os búfalos.
Depois de seguir as pegadas durante bastante tempo, ele chega a um atoleiro onde os búfalos gostavam de rolar para se livrar dos piolhos. O índio senta-se e põe-se a pensar: o que vou fazer?
Então ele vê uma bela pega. Nas mitologias dos povos caçadores há certos animais que são muito espertos: pegas, raposas, gaio-azul e corvos. São uma espécie de animais xamânicos. A pega se aproxima e começa a ciscar e o pai lhe diz: "Belo pássaro, minha filha fugiu com um búfalo. Será que você viu alguma jovem com os búfalos?".
A pega responde: "Sim, há uma jovem lá com os búfalos agora mesmo".
O pai pergunta: "Será que você pode ir dizer a ela que seu pai está aqui?".
E a pega voa até onde está a moça. Não sei o que ela estava fazendo exatamente, tricotando ou algo semelhante, e atrás dela todos os búfalos estavam tirando uma soneca. Bem atrás dela estava o maior deles. O pássaro chega ciscando e fala: "O seu pai está lá no atoleiro".
"Nossa", diz ela, "que perigo! Isto é terrível! Diga para ele esperar. Vou ver o que posso fazer."
Logo depois o búfalo acorda, o grandão bem atrás dela, tira um dos seus chifres e ordena: "Vá buscar um pouco de água para mim".
Ela pega o chifre e vai até o atoleiro e lá está seu pai. O pai a agarra e diz: "Vem comigo".
"Não, não, isso é muito perigoso. Me deixe arranjar as coisas." Ela pega a água e volta para o búfalo. Ele pega a água e a cheira, e diz: "Hum!... sinto cheiro de sangue de índio".
E ela exclama: "Oh! Não!".
E ele diz: "Sim", e dá um urro acordando todos os búfalos, que se levantam, erguem suas caudas e começam a dançar e a urrar seguindo em direção ao atoleiro. Pisoteiam e esmagam o pai da moça, tornando-o invisível. Ele apenas não está mais ali, eles o haviam eliminado.
A moça começa a chorar e o velho búfalo pergunta: "Você está chorando, o que aconteceu?".
"Era o meu pai."
Ele diz: "Sim, você perdeu seu pai, mas nós perdemos nossas esposas, nossos tios, nossos filhos, todos, para alimentar o seu povo".
"Bem", ela responde, "mas... Papai!"
O búfalo tem uma espécie de compaixão por ela, e diz: "Bem, se você conseguir trazer seu pai de volta à vida eu vou libertar você".
Ela então chama a pega e pergunta: "Quer ciscar um pouco por aí para ver se pode encontrar um pedacinho de Papai?". E o pássaro obedece. Vai ciscando, ciscando, até encontrar uma lasca de vértebra, um pedacinho de osso das costas.
"Acho que encontrei uma coisa aqui", diz.
"Está bem, isso vai servir", afirma ela. E coloca o pedacinho de osso no chão, pega seu manto e coloca-o sobre ele, começando a cantar. É uma canção mágica, poderosa. Logo depois pode se ver que há um homem sob o manto. A moça vai olhar e é mesmo seu Papai. Mas ele ainda precisa de um pouco mais de canto.
Ela continua com seu canto e logo depois ele se levanta. Os búfalos estavam tremendamente empolgados com tudo isso. E dizem: "Por que vocês não fazem a mesma coisa conosco? Por que vocês não nos trazem de volta à vida, depois de nos matar? Vamos dar a vocês a nossa dança dos búfalos, vamos ensinar como se faz. Depois que vocês tiverem matado uma grande parte do nosso povo, dançarão e cantarão sua canção e nós voltaremos todos os anos para alimentar o seu povo".
Essa é a lenda de origem da sociedade do búfalo com os índios Blackfoot. A lenda foi publicada - em um livro que li quando criança - originalmente por George Bird Grinnell. Ele era um escritor realmente maravilhoso e colecionador de material sobre os índios norte-americanos. O título desse livro é Blackfoot lodge tales [Contos da morada dos Blackfoot].
Passando de um povo a outro continuamente encontramos histórias como essa, relativas a um pacto entre as pessoas e os animais, todos entendidos como parte da natureza do mundo, da vida se alimentando da vida. E, quando esses povos comem, naturalmente eles não agradecem a Deus o fato de Ele lhes ter dado o animal como alimento. Eles agradecem ao próprio animal, um ato muito mais apropriado.
Joseph Campbell
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