21 de agosto de 2021

Imaginação e objetividade


Não se pode negar que a consciência humana seja movida pela imaginação. O problema surge quando tentamos interpretar a função da imaginação.
Para entender esta questão temos de nos lembrar dos ideais epistemológicos que têm dominado a ciência moderna e, derivativamente, dos ideais de normalidade psíquica que daí se derivam. Não há nenhum estudante de ciência que ignore que o conhecimento deve ser objetivo. O que é objetividade? Objetividade é aquela condição da consciência em que ela se disciplina para simplesmente refletir e reduplicar os dados da realidade. Ela não pode permitir que as suas aspirações, os seus valores, os seus desejos, de qualquer forma interfiram neste processo. A realidade ignora as nossas aspirações. Por isto, sempre que permitimos que o objeto seja representado na consciência pela influência dos desejos, o objeto é sistematicamente falsificado. Quando isto acontece o objeto representado não é o que é, na realidade, mas simplesmente aquilo que desejamos que ele seja. Não é difícil entender que, dentro desta perspectiva, a imaginação deva ser rejeitada. A imaginação é filha dos nossos desejos e, consequentemente, sempre que imaginamos passamos a ver as coisas reais no fascinante esplendor do capricho. Ao ideal epistemológico de objetividade, assim, corresponde a exigência de que a imaginação seja eliminada, como origem de perturbações no processo de conhecer o mundo. Este mesmo ideal foi transplantado para o campo da psicologia. Freud define o neurótico como aquele que troca a realidade pela imaginação. Qual, então, seria o modelo de personalidade normal? Normal é a pessoa que sabe que a imaginação é ilusão, e que portanto voluntariamente a reprime (já que não é possível eliminá-la), e que se ajusta à lógica do princípio da realidade.
Estes ideais de conhecimento objetivo e de normalidade psíquica têm exercido uma influência dominante na ciência ocidental e têm sido responsáveis, em grande medida, pelo tratamento que o fenômeno religioso tem recebido nos seus círculos e, indiretamente, pela nossa forma de compreender a imaginação. Porque, o que é a religião senão uma forma de imaginação? E, inversamente, na medida em que a imaginação é sempre filha do desejo, não será ela sempre religiosa?
Cabe, entretanto, a seguinte pergunta: se vamos levar o critério de objetividade até as suas últimas consequências, não será forçoso reconhecer que o ideal de consciência pura, totalmente objetiva, é um mito? Onde é que a encontramos como um dado da experiência? A consciência objetiva não existe. Ela é um ideal, que nasceu de condições históricas específicas. A própria consciência objetiva é uma construção normativa da imaginação. Nas palavras de Werner Stark, "o pensamento não-valorativo (value-free) pode ser um ideal, mas certamente ele não é encontrado em parte alguma como realidade". Empiricamente, o que é que encontramos, mesmo naquelas atividades que o homem pretende serem rigorosamente objetivas, como a ciência? Encontramos uma consciência concreta, envolvida nos problemas reais da vida e morte que a condicionam e, portanto, dominada pela emoção e embalada pela imaginação. A ciência, não importa quão pura, é o produto de seres humanos comprometidos na tarefa excitante de viver as suas vidas pessoais. Assim, as criações científicas não são apenas representações simbólicas dos assim chamados eventos externos, mas antes arranjos que devem servir à necessidade humana de autoconsciência.
Uma dimensão fascinante da história da ciência moderna é o papel que a imaginação e a fantasia desempenharam em muitas de suas grandes descobertas. Mais curioso ainda é verificar como os cientistas, ao repensar o seu método de invenção, não se deram conta disto.

Rubem Alves

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