29 de setembro de 2017

Arabutan



Devo começar pela descrição de uma das árvores mais notáveis, e apreciadas entre nós por causa da tinta que dela se extrai: o pau-brasil que deu nome a essa região. Essa árvore, a que os selvagens chamam arabutan engalha como o carvalho das nossas florestas e algumas há tão grossas que três homens não bastam para abraçar-lhes o tronco.
A respeito de árvores grossas, diz o autor da “História Geral das Índias Ocidentais" que nessas regiões lhe foi dado ver duas árvores com troncos de extraordinária grossura; um media mais de oito braças de circunferência e outro além de dezesseis. Conta ainda que a primeira era tão alta que ninguém lhe podia alcançar o cimo com uma pedrada e nela um cacique, por segurança armara a sua choça. Disso se riam os espanhóis, pois parecia pousar-se ali como uma cegonha. A segunda árvore era também maravilhosa mas o autor refere ainda que no país de Nicarágua existe uma árvore chamada cerba que engrossa a ponto de quinze homens não poderem abraçá-la.
Voltando ao pau-brasil, direi que tem fôlhas semelhantes às do buxo embora de um verde mais claro, e não dá frutos. Quanto ao modo de carregar os navios com essa mercadoria direi que tanto por causa da dureza e consequente dificuldade em derrubá-la, como por não existirem cavalos, asnos nem outros animais de tiro para transportá-la é ela arrastada por meio de muitos homens; e se os estrangeiros que por aí viajam não fossem ajudados pelos selvagens não poderiam nem sequer em um ano carregar um navio de tamanho médio. Os selvagens em troca de algumas roupas, camisas de linho, chapéus, facas, machados, cunhas de ferro e demais ferramentas trazidas por franceses e outros europeus, cortam, serram, racham, atoram e desbastam o pau-brasil transportando-o nos ombros nus às vêzes de duas ou três léguas de distância, por montes e sítios escabrosos até a costa junto aos navios ancorados onde os marinheiros o recebem. Em verdade só cortam o pau-brasil depois que os franceses e portugueses começaram a frequentar o país; anteriormente, como me foi dito por um ancião, derrubavam as árvores deitando-lhes fogo. Na Europa imaginam muitos que os toros redondos encontrados nos armazéns são da grossura natural das árvores; já observei que estas são muito grossas por isso os selvagens desbastam os troncos e os arredondam a fim de facilitar o transporte e o manejo nos navios. Como durante a nossa estada nesse país fizemos muitas fogueiras com o pau-brasil observei que a madeira não é úmida, mas naturalmente seca e queima com pouca, ou quase nenhuma fumaça. Um dos nossos companheiros indo lavar camisas deitou por ignorância cinzas dessa madeira na lixívia; em vez de alvejá-las esta as tornou tão vermelhas que não achamos meio de tirar-lhes a coloração embora as tivéssemos lavado e ensaboado logo em seguida; e tivemos de usá-las assim com essa tintura. Se aqueles que mandam branquear suas camisas ou outras roupas engomadas nas Flandres duvidam do que digo, façam a experiência.
Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: “Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas. 
Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? - Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. - Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? - Sim, disse eu, morre como os outros. 
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? - Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. - Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados”.
Este discurso, aqui resumido, mostra como esses pobres selvagens americanos, que reputamos bárbaros, desprezam àqueles que com perigo de vida atravessam os mares em busca de pau-brasil e de riquezas. Por mais obtusos que sejam, atribuem esses selvagens maior importância à natureza e à fertilidade da terra do que nós ao poder e à providência divina; insurgem-se contra esses piratas que se dizem cristãos e abundam na Europa tanto quanto escasseiam entre os nativos. Os tupinambás, como já disse, odeiam mortalmente os avarentos e prouvera a Deus que estes fossem todos lançados entre os selvagens para serem atormentados como por demônios, já que só cuidam de sugar o sangue e a substância alheia. Era necessário que eu fizesse esta digressão, com vergonha nossa, a fim de justificar os selvagens pouco cuidadosos nas coisas deste mundo. E, a propósito, poderia acrescentar o que o autor da “História das Índias Ocidentais” escreveu acerca de certa nação que habita o Peru. Diz ele que quando os espanhóis principiaram a colonizar esse país os selvagens vendo-os barbados, delicados e mimosos, recearam que eles lhes corrompessem os antigos costumes: não queriam por isso receber essa gente a que chamavam espuma do mar, isto é, gente sem país, homens sem descanso, que não param em parte alguma para cultivar a terra.
 
Jean de Léry

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