24 de outubro de 2016

Heroísmo por procuração


A ação mais degradada é a daquele que não age e passa procuração a outrem para agir - a dos frequentadores dos espetáculos de luta e a dos consumidores da literatura de violência. Ser herói e através de outrem, ser corajoso em imaginação, é o limite extremo da ação gratuita, do orgulho ou da vaidade que não ousa. Corre-se o risco sem se correr, experi­menta-se como se se experimentasse, colhe-se o prazer do triunfo sem nada arriscar. E é por isso que os filmes de guerra, do heroísmo policial, de espionagem, têm de acabar bem. Por­que o que aí se procura é justamente o sabor do triunfo e não apenas do risco. O gosto do risco procura-o o herói real, o jogador que pode perder. Mas o espectador da sua luta, degra­dado na sedução da ação, acentua a sua mediocridade no não poder aceitar a derrota, no fingir que corre o risco mesmo em ficção, mas com a certeza prévia de que o risco é vencido. O que ele procura é a pequena lisonja à sua vaidade pequena, a figuração da coragem para a sua covardia, e só a vitória do herói a quem passou procuração o pode lisonjear. E se o herói morre em grandeza, há o prazer ainda de o espectador estar vivo para saborear a coragem do que morreu e a não pode já saborear. A vida do herói estende-se assim para além da sua morte onde a espera o espectador para se investir da glória que lhe coube e ele já não pôde gozar. É de dentro da vida e do conforto que o espectador da coragem saboreia o prazer da coragem que não tem. Daí às vezes a ilusão de que também ele poderia enfrentar os mesmos riscos, se os enfrentasse. O que lhe fica à superfície de toda a ação é o gosto dessa ação e não a dificuldade de a realizar.
 
Vergílio Ferreira

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