Nos primeiros quatro dias de enfermidade de Nelly, nós dois - eu e o médico - temíamos horrivelmente por ela; no quarto dia, porém, o doutor chamou-me de parte e me disse que não receasse nada, que a pequena se restabeleceria indiscutivelmente. Era aquele mesmo velho doutor, meu conhecido há tempos, solteirão, bonachão, e excêntrico, que eu já chamara por ocasião da primeira moléstia de Nelly, e que tanta impressão fizera à garota com sua fita de São Estanislau de dimensões desusadas, ao pescoço.
- Então já não há perigo! exclamei, radiante.
- Não, desta ela escapa; contudo está condenada a viver muito pouco.
- Como? Por quê? - indaguei, aniquilado ante aquele prognóstico.
- Sim, nossa doentinha há de infalivelmente morrer jovem. Tem um defeito orgânico no coração, e a menor circunstância desfavorável arrisca prostrá-la de novo. Poderá restabelecer-se outra vez, todavia voltará a adoecer, até que a morte sobrevenha.
- E não haverá meio nenhum de salvá-la? Não, isso não pode ser!
- Mas tem que ser, inapelavelmente. É verdade que, evitando-lhe qualquer contratempo desagradável, assegurando-lhe uma vida tranquila, se poderia ir afastando dela a morte... e até se dão casos... inesperados, anormais e raros... Em uma palavra, a doente poderia salvar-se com o concurso de muitas circunstâncias favoráveis, embora radicalmente... nunca...
- Meu Deus - que hei de fazer então?
- Seguir minhas prescrições: precisa levar uma vida calma, e tomar na hora certa os remédios. Já observei que essa menina é voluntariosa, de um caráter desigual, e até um pouco manhosa. Não gosta de tomar o remédio na hora indicada, e às vezes até se nega inteiramente a engolí-los.
- É verdade, doutor. Realmente, ela é uma criatura estranha; porém isso eu o atribuo à sua mórbida excitação. Na noite passada, esteve muito obediente; mas hoje, quando lhe levei o remédio, deu um empurrão na colherinha, como sem querer, e a derramou toda. Quando lhe quis dar outra, arrebatou-me o frasco da mão, atirou-o ao chão e se pôs a chorar... Contudo, não creio que faça isso porque eu a obrigue a tomar remédios... acrescentei, pensativo.
- Hum! Irritação! Essa grande desgraça que ela sofreu é responsável pelos fatos de agora, e daí procede sua enfermidade. Por enquanto, a única coisa a fazer é tomar os remédios, e ela os precisa tomar. Eu voltarei, e me esforçarei por lhe inculcar a ideia da obrigação que lhe cabe de seguir as prescrições do médico e... em resumo, de tomar os remédios.
Saímos da cozinha, onde tivéramos a nossa conversa, e o doutor voltou para junto da cama da doentinha. Entretanto, Nelly evidentemente ficara a nos escutar; pelo menos erguera a cabeça no travesseiro e volvera os ouvidos para nós: escutara durante todo o tempo. Observei isso pela fresta da porta, entreaberta. Ao nos aproximarmos, voltou a se embrulhar na coberta e me fitou com um sorriso malicioso. A pobrezinha enfraquecera muito naqueles quatro dias de moléstia; tinha os olhos úmidos e a febre ainda não passara. O singular foi que aquele ar zombeteiro no rosto, e aquele vivo fulgor nos olhos, causaram não pequena admiração no médico, que era o mais bonachão de todos os alemães existentes em Petersburgo.
Com toda a seriedade, mas esforçando-se o quanto possível para suavizar o tom da voz, usando de afeto e ternura, ele se pôs a demonstrar à garota quão imprescindíveis e úteis eram os remédios, e portanto, a obrigação em que ficava todo doente de os tomar. Nelly levantou a cabeça; e com um gesto que parecia inteiramente involuntário, deu um safanão na colherinha e o remédio caiu novamente no chão. Estou certo de que o fez de propósito.
- Foi um acidente lamentável, disse tranquilamente o velhinho; e suspeito que você o fez de propósito, o que é muito feio. Porém... tudo se poderá arranjar... trazendo-lhe de novo o remédio.
Nelly riu-lhe francamente, no rosto.
O doutor meneou gravemente a cabeça.
- Muito feio, muito feio, repetia, trazendo nova dose, - muitíssimo feio.
- Não se zangue comigo, falou Nelly, esforçando-se por não tornar a rir - vou tomar o remédio... Mas diga se me quer bem...
- Hei de querer muito bem, se se portar direitinho.
- Muito?
- Muito.
- E agora, não quer?
- Também lhe quero agora.
- E me dá um beijo, se eu lhe der outro?
- Sim, sempre que você o mereça.
Já não se podendo conter, Nelly novamente riu.
- A doentinha tem o gênio alegre; mas agora... esses nervos e esses caprichos... disse-me o doutor à parte, com atitude muito séria.
- Bem, vou tomar o remédio, exclamou de repente Nelly, com sua vozinha débil. Quando, porém, eu crescer, e ficar moça, o senhor se casa comigo?
Provavelmente a ideia dessa nova brincadeira a divertia muito. Os olhos lhe chispavam; mas os lábios reprimiam o riso, à espera da resposta do desconcertado médico.
- Claro que sim! respondeu ele, sorrindo involuntariamente ante aquela nova pilhéria. Sim, se você for uma moça boa, educada e obediente e...
- ... E tomar os remédios, não é verdade? completou Nelly.
- Oh! isso mesmo; sim senhora, e tomar os remédios. É uma boa moça, murmurou-me ao ouvido. Tem muita, muita... bondade e inteligência; entretanto... isso de me casar com ela... que capricho estranho!
E de novo lhe ofereceu o remédio. Desta vez ela não se deu nem ao trabalho de simular: deu simplesmente uma pancada na colher, de baixo para cima, e todo o remédio espirrou diretamente na camisa e no rosto do pobre velho. Nelly soltou uma gargalhada; mas não do modo simples e jovial de antes. Em seu rosto refletiu-se algo cruel, mau. Durante todo aquele tempo parecia fugir ao meu olhar, observando unicamente o médico, e com um risinho, através do qual se vislumbrava certa inquietação, esperava para ver o que faria agora o "ridículo" velhote.
- Oh, outra vez! que desgraça! Mas... pode-se trazer outra dose - continuou o ancião, limpando com o lenço o rosto e a camisa.
Aquilo impressionou horrivelmente Nelly. Esperava nossa zanga, pensava que íamos ralhar-lhe, censurá-la, e talvez inconscientemente desejasse que assim o fosse, naquele instante, para ter um pretexto e pôr-se a chorar e gritar como uma histérica; atirar fora os travesseiros, como antes, até mesmo quebrar qualquer coisa, em sua cólera, e com isso tudo satisfazer à sua caprichosa e doentia disposição. Caprichos semelhantes não costumam observar-se só entre doentes, nem unicamente em Nelly. Quantas vezes me tenho posto a dar voltas acima e abaixo, em meu quarto, com a ânsia inconsciente de que alguém me ofenda, quanto antes, ou me diga alguma palavra que eu possa tomar como insulto, para poder desafogar o coração! As mulheres também "desafogam" o coração dessa maneira, e começam por derramar as mais sinceras lágrimas; porém as mais sensíveis terminam histéricas. Coisa muito simples e vital, que costuma suceder principalmente quando se tem algum sofrimento que outros ignoram, que o coração gostaria de desafogar, mas que não é possível comunicar a ninguém.
Contudo, de repente, desconcertada ante a angélica bondade do velho por ela ofendido, e a paciência com que de novo ele lhe foi levar uma terceira colherada do remédio, sem lhe dirigir uma única censura, Nelly se apaziguou. O sorriso lhe voou dos lábios, a cor subiu-lhe às faces, suavizou-lhe o olhar, que me procurou de relance, mas imediatamente se desviou. O doutor lhe apresentou o remédio. Ela tranquila e mansamente o bebeu, segurou a mão vermelha e peluda do velho e lhe fitou os olhos.
- O senhor... está zangado porque sou ruim - começou a dizer, todavia não acabou a frase. Escondeu-se sob a coberta, tapando a cabeça e rompeu a soluçar ruidosa, histericamente.
- Oh! minha filha... não chore. Não foi nada... são seus nervos. Beba um pouco de água.
Porém Nelly não o escutava.
- Não se impressione... não se atormente, continuou ele, quase choramingando também, pois era homem muito sensível. Prometo me casar com você, quando crescer, se for uma moça boazinha e ajuizada...
- ... E tomar os remédios... ouviu-se, por baixo da coberta, juntamente com um risinho nervoso, fino como um tilintar de campainha, entrecortado pelos soluços; um riso que me era familiar.
- Criança boa e afetuosa! disse o doutor com solenidade e quase com lágrimas nos olhos. Pobrezinha!
E desde então, entre ele e Nelly se estabeleceu uma simpatia estranha.
- Então já não há perigo! exclamei, radiante.
- Não, desta ela escapa; contudo está condenada a viver muito pouco.
- Como? Por quê? - indaguei, aniquilado ante aquele prognóstico.
- Sim, nossa doentinha há de infalivelmente morrer jovem. Tem um defeito orgânico no coração, e a menor circunstância desfavorável arrisca prostrá-la de novo. Poderá restabelecer-se outra vez, todavia voltará a adoecer, até que a morte sobrevenha.
- E não haverá meio nenhum de salvá-la? Não, isso não pode ser!
- Mas tem que ser, inapelavelmente. É verdade que, evitando-lhe qualquer contratempo desagradável, assegurando-lhe uma vida tranquila, se poderia ir afastando dela a morte... e até se dão casos... inesperados, anormais e raros... Em uma palavra, a doente poderia salvar-se com o concurso de muitas circunstâncias favoráveis, embora radicalmente... nunca...
- Meu Deus - que hei de fazer então?
- Seguir minhas prescrições: precisa levar uma vida calma, e tomar na hora certa os remédios. Já observei que essa menina é voluntariosa, de um caráter desigual, e até um pouco manhosa. Não gosta de tomar o remédio na hora indicada, e às vezes até se nega inteiramente a engolí-los.
- É verdade, doutor. Realmente, ela é uma criatura estranha; porém isso eu o atribuo à sua mórbida excitação. Na noite passada, esteve muito obediente; mas hoje, quando lhe levei o remédio, deu um empurrão na colherinha, como sem querer, e a derramou toda. Quando lhe quis dar outra, arrebatou-me o frasco da mão, atirou-o ao chão e se pôs a chorar... Contudo, não creio que faça isso porque eu a obrigue a tomar remédios... acrescentei, pensativo.
- Hum! Irritação! Essa grande desgraça que ela sofreu é responsável pelos fatos de agora, e daí procede sua enfermidade. Por enquanto, a única coisa a fazer é tomar os remédios, e ela os precisa tomar. Eu voltarei, e me esforçarei por lhe inculcar a ideia da obrigação que lhe cabe de seguir as prescrições do médico e... em resumo, de tomar os remédios.
Saímos da cozinha, onde tivéramos a nossa conversa, e o doutor voltou para junto da cama da doentinha. Entretanto, Nelly evidentemente ficara a nos escutar; pelo menos erguera a cabeça no travesseiro e volvera os ouvidos para nós: escutara durante todo o tempo. Observei isso pela fresta da porta, entreaberta. Ao nos aproximarmos, voltou a se embrulhar na coberta e me fitou com um sorriso malicioso. A pobrezinha enfraquecera muito naqueles quatro dias de moléstia; tinha os olhos úmidos e a febre ainda não passara. O singular foi que aquele ar zombeteiro no rosto, e aquele vivo fulgor nos olhos, causaram não pequena admiração no médico, que era o mais bonachão de todos os alemães existentes em Petersburgo.
Com toda a seriedade, mas esforçando-se o quanto possível para suavizar o tom da voz, usando de afeto e ternura, ele se pôs a demonstrar à garota quão imprescindíveis e úteis eram os remédios, e portanto, a obrigação em que ficava todo doente de os tomar. Nelly levantou a cabeça; e com um gesto que parecia inteiramente involuntário, deu um safanão na colherinha e o remédio caiu novamente no chão. Estou certo de que o fez de propósito.
- Foi um acidente lamentável, disse tranquilamente o velhinho; e suspeito que você o fez de propósito, o que é muito feio. Porém... tudo se poderá arranjar... trazendo-lhe de novo o remédio.
Nelly riu-lhe francamente, no rosto.
O doutor meneou gravemente a cabeça.
- Muito feio, muito feio, repetia, trazendo nova dose, - muitíssimo feio.
- Não se zangue comigo, falou Nelly, esforçando-se por não tornar a rir - vou tomar o remédio... Mas diga se me quer bem...
- Hei de querer muito bem, se se portar direitinho.
- Muito?
- Muito.
- E agora, não quer?
- Também lhe quero agora.
- E me dá um beijo, se eu lhe der outro?
- Sim, sempre que você o mereça.
Já não se podendo conter, Nelly novamente riu.
- A doentinha tem o gênio alegre; mas agora... esses nervos e esses caprichos... disse-me o doutor à parte, com atitude muito séria.
- Bem, vou tomar o remédio, exclamou de repente Nelly, com sua vozinha débil. Quando, porém, eu crescer, e ficar moça, o senhor se casa comigo?
Provavelmente a ideia dessa nova brincadeira a divertia muito. Os olhos lhe chispavam; mas os lábios reprimiam o riso, à espera da resposta do desconcertado médico.
- Claro que sim! respondeu ele, sorrindo involuntariamente ante aquela nova pilhéria. Sim, se você for uma moça boa, educada e obediente e...
- ... E tomar os remédios, não é verdade? completou Nelly.
- Oh! isso mesmo; sim senhora, e tomar os remédios. É uma boa moça, murmurou-me ao ouvido. Tem muita, muita... bondade e inteligência; entretanto... isso de me casar com ela... que capricho estranho!
E de novo lhe ofereceu o remédio. Desta vez ela não se deu nem ao trabalho de simular: deu simplesmente uma pancada na colher, de baixo para cima, e todo o remédio espirrou diretamente na camisa e no rosto do pobre velho. Nelly soltou uma gargalhada; mas não do modo simples e jovial de antes. Em seu rosto refletiu-se algo cruel, mau. Durante todo aquele tempo parecia fugir ao meu olhar, observando unicamente o médico, e com um risinho, através do qual se vislumbrava certa inquietação, esperava para ver o que faria agora o "ridículo" velhote.
- Oh, outra vez! que desgraça! Mas... pode-se trazer outra dose - continuou o ancião, limpando com o lenço o rosto e a camisa.
Aquilo impressionou horrivelmente Nelly. Esperava nossa zanga, pensava que íamos ralhar-lhe, censurá-la, e talvez inconscientemente desejasse que assim o fosse, naquele instante, para ter um pretexto e pôr-se a chorar e gritar como uma histérica; atirar fora os travesseiros, como antes, até mesmo quebrar qualquer coisa, em sua cólera, e com isso tudo satisfazer à sua caprichosa e doentia disposição. Caprichos semelhantes não costumam observar-se só entre doentes, nem unicamente em Nelly. Quantas vezes me tenho posto a dar voltas acima e abaixo, em meu quarto, com a ânsia inconsciente de que alguém me ofenda, quanto antes, ou me diga alguma palavra que eu possa tomar como insulto, para poder desafogar o coração! As mulheres também "desafogam" o coração dessa maneira, e começam por derramar as mais sinceras lágrimas; porém as mais sensíveis terminam histéricas. Coisa muito simples e vital, que costuma suceder principalmente quando se tem algum sofrimento que outros ignoram, que o coração gostaria de desafogar, mas que não é possível comunicar a ninguém.
Contudo, de repente, desconcertada ante a angélica bondade do velho por ela ofendido, e a paciência com que de novo ele lhe foi levar uma terceira colherada do remédio, sem lhe dirigir uma única censura, Nelly se apaziguou. O sorriso lhe voou dos lábios, a cor subiu-lhe às faces, suavizou-lhe o olhar, que me procurou de relance, mas imediatamente se desviou. O doutor lhe apresentou o remédio. Ela tranquila e mansamente o bebeu, segurou a mão vermelha e peluda do velho e lhe fitou os olhos.
- O senhor... está zangado porque sou ruim - começou a dizer, todavia não acabou a frase. Escondeu-se sob a coberta, tapando a cabeça e rompeu a soluçar ruidosa, histericamente.
- Oh! minha filha... não chore. Não foi nada... são seus nervos. Beba um pouco de água.
Porém Nelly não o escutava.
- Não se impressione... não se atormente, continuou ele, quase choramingando também, pois era homem muito sensível. Prometo me casar com você, quando crescer, se for uma moça boazinha e ajuizada...
- ... E tomar os remédios... ouviu-se, por baixo da coberta, juntamente com um risinho nervoso, fino como um tilintar de campainha, entrecortado pelos soluços; um riso que me era familiar.
- Criança boa e afetuosa! disse o doutor com solenidade e quase com lágrimas nos olhos. Pobrezinha!
E desde então, entre ele e Nelly se estabeleceu uma simpatia estranha.
Fiodor Dostoievski
Nenhum comentário:
Postar um comentário