A fome pôs-se a estender sua devastação e era de temer o desaparecimento do gênero humano quase todo. As condições atmosféricas tornaram-se tão desfavoráveis que não se encontrava tempo propício para nenhuma semente e, sobretudo por causa das inundações, não houve meio de fazer as colheitas. (...) Chuvas contínuas tinham encharcado a terra toda, a ponto de, durante três anos, ser impossível cavar sulcos capazes de receber as sementes. Na época da colheita, as ervas selvagens e o joio nefasto tinham coberto toda a superfície dos campos. Um moio de semente, onde melhor rendia, dava na colheita um sesteiro, e esse sesteiro, por sua vez, mal produzia um punhado. Se por acaso se encontrasse algum alimento à venda, o vendedor podia exigir por ele, a seu grado, um preço excessivo. Entretanto, depois de comerem os animais selvagens e os pássaros, os homens se puseram, por imposição de uma fome devoradora, a catar para comer todos os tipos de carniça e coisas horríveis de mencionar. Alguns, para escapar da morte, recorreram às raízes das florestas e às algas dos rios. Enfim, o horror embarga a narração das perversões que reinaram então em meio ao gênero humano. Que desgraça! Ó dor! Coisa que raramente se ouviu no decorrer dos tempos, uma fome devastadora fez com que os homens devorassem carne humana. Viajantes eram capturados por outros mais fortes do que eles, seus membros eram cortados, cozidos ao fogo e devorados. Muitas pessoas que iam de um lugar para outro, fugindo da fome, e que tinham encontrado hospitalidade no caminho, à noite foram estranguladas e serviram de alimento para os que as haviam acolhido. Muitos, mostrando um fruto ou um ovo para uma criança, atraíam-na para lugares afastados, a massacravam e a devoravam. Os corpos dos mortos foram arrancados da terra em muitos lugares e também serviram para aplacar a fome.
Fez-se então, na região de Mâcon, uma experiência que, pelo que sabemos, ainda não fora tentada em lugar nenhum. Muitas pessoas extraíam do solo uma terra branca semelhante à argila, misturavam-na ao que tinham de farinha de farelo e com essa mistura faziam pães graças aos quais contavam não morrer de fome; essa prática, contudo, trazia apenas esperança de salvação e um alívio ilusório. Só se viam rostos pálidos e macilentos; muitos apresentavam a pele distendida pelo inchaço; a própria voz humana tornava-se esganiçada, como gritinhos de pássaros moribundos. Os cadáveres, cuja grande quantidade obrigava a abandonar aqui e ali sem sepultura, serviam de pasto aos lobos, que depois continuaram por muito tempo a procurar sua ração entre os homens. E, como não se conseguia, dizíamos, enterrar cada um individualmente por causa da grande quantidade de mortos, em alguns lugares, homens tementes a Deus escavavam o que chamamos correntemente de valas comuns, nas quais os corpos dos defuntos eram jogados aos quinhentos ou mais, dependendo do espaço, amontoados, seminus ou descobertos; as encruzilhadas, as bordas do campo também serviam de cemitérios. Se alguns ouviam dizer que poderiam estar melhor se fossem para outras regiões, muitos eram os que morriam de inanição pelo caminho.
Raoul Glaber
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