4 de março de 2017

Em nome de Deus


Embora a luta acalmasse enquanto os dois exércitos eram abalados por suas baixas, alguns embates ferozes ainda ocorriam. Em 6 de agosto de 1219, os soldados cristãos tentaram encher o fosso que protegia Damieta, mas o esforço foi em vão. Outros cem cruzados foram mortos. Pelagio recorreu fortemente ao tesouro do papa para preparar quatro navios de combate para seus aliados de Pisa, Gênova e Veneza, munindo-os com o máximo de escadas, cordas e âncoras necessárias. Os atacantes seguiam em frente ao som de trombetas, cornetas e bandeiras tremulantes. As tropas muçulmanas que haviam erguido novas torres de madeira ao longo das muralhas da cidade estancaram o ataque ao queimar as escadas dos cruzados.
A Cada dia Francisco encontrava mais evidências para sua crença de que a guerra libertava demônios. Oito espiões muçulmanos foram capturados quando tentavam nadar para o outro lado do rio. Os cruzados os mutilaram, extirpando seus narizes, braços, lábios, ouvidos e vazando um olho de cada um. Metade deles foi enviada de volta ao acampamento muçulmano; o resto foi mantido para exibição. Mais tarde os muçulmanos devolveram um cristão com as mesmas mutilações. 
Houve um debate no acampamento cristão sobre iniciar um ataque total visando a destruir o exército muçulmano, ou manter o cerco até que a guarnição deles finalmente se entregasse. Pelagio, sem fazer alarde, preparava um novo ataque. Com medo de que houvesse espiões espalhados por todos os lados, ele revelou seus planos apenas a poucos clérigos leais e alguns cavaleiros de sua confiança. Conforme Jacques de Vitry escreveu em sua carta ao papa Honório, o cardeal estava preocupado com a possibilidade de que seus planos se espalhassem, pois a oposição a eles aumentaria entre os cruzados, que achavam muito melhor esperar o inimigo morrer de fome.
Quando Pelagio revelou seu plano, Jean de Brienne e outros comandantes franceses, seus aliados, insistiram para que o cardeal continuasse o cerco ao invés de atacar. Os líderes militares haviam visto a situação em que se encontravam as pessoas que tentavam escapar da cidade fortificada e salvar suas vidas. "Sua condição de esfomeados e doentes demonstravam claramente o sofrimento de seus compatriotas", de acordo com Roger de Wendover. Era evidente que as vidas dos cruzados poderiam ser poupadas caso eles aguardassem o fim do cerco. Entretanto, o cardeal Pelagio, em conluio com os navegadores cruzados italianos e com as ordens militares, como a dos Templários, insistia em atacar. A força toda se preparou para uma ofensiva, por terra e pelo rio, planejada para o dia 29 de agosto de 1219, dia da Festa da Decapitação de São João Batista.
(...)
Quando a armada cristã avançou, os soldados muçulmanos encampados entre o lago Manzala, de água salgada, e o Nilo abaixaram suas tendas e fingiram uma retirada. Para os cristãos, parecia que Deus iria entregar-lhes uma vitória fácil. Os cruzados seguiram adiante, mas logo descobriram, para seu malgrado, que não havia como obter água fresca. Eles provaram a água de uma trincheira cavada por muçulmanos, mas ela era salgada. Os líderes da armada cristã iniciaram uma longa discussão sobre o que deveriam fazer em seguida. Muitos dos soldados de infantaria ficaram para trás, sofrendo com sede e com o calor que queimava vindo do céu e refletido pela areia. Eles sofriam com o peso de suas armaduras e armas. De acordo com uma carta escrita para o papa por Jacques de Vitry, os líderes decidiram retornar. Ao mesmo tempo, alguns soldados de infantaria - os mesmos homens que haviam pressionado por um ataque - entraram em pânico ao se sentirem cada vez mais desidratados. 
Sob o causticante sol de agosto, os soldados cristãos caíram. Sem água, os soldados de infantaria não tinham como diluir o vinho que eles carregavam para a batalha, como de costume. Mortos de sede, não tinham escolha a não ser beber o vinho puro. Suas malhas de ferro, suas espadas, escudos e capacetes se transformaram em fardos esmagadores. O calor e a sede eram tão terríveis que aqueles que paravam por um momento ficavam tontos e desmaiavam sem nem estarem feridos. O sol queimava a armadura dos cavaleiros, e as deixava como ferro em brasa.
Diante da indecisão dos cristãos, os muçulmanos agitaram-se. Os soldados italianos de infantaria, ao centro da formação Cruzada, haviam se destacado para a frente, deixando uma abertura para que os muçulmanos atacassem um flanco. Como Jacques de Vitry solenemente informou ao papa Honório por carta, de repente os inimigos pareciam estar por todos os lados, atirando flechas, jogando lanças, batendo com clavas e arremessando bolas de fogo. Nesse meio tempo, Jean de Brienne encontrava-se ocupado lutando contra beduínos que haviam expulsado as mulheres designadas para levar água do Rio Nilo até os soldados cristãos. Cavaleiros cipriotas, no flanco direito, rapidamente descobriram que o exército do sultão havia forjado uma retirada; eles fugiram enquanto o inimigo atacava. Os soldados italianos de infantaria, antes tão ansiosos para lutar, debandaram. Então, cavaleiros de várias nações fugiram em seus cavalos, inclusive alguns dos garbosos cavaleiros Hospitaleiros de São João. Pelagio e o patriarca de Jerusalém gritavam com as tropas, implorando para que voltassem e lutassem. Alguns cavaleiros voltaram ao ataque, apenas para serem cercados e massacrados. 
No esvaziado acampamento cristão, Francisco preocupava-se com o que teria acontecido com as tropas e pediu a um de seus irmãos que fosse dar uma olhada. O irmão voltou e disse-lhe que não conseguira ver nada, pois a batalha se dava a muitos quilômetros ao sul.
Ansioso, Francisco pediu um pouco mais tarde que seu companheiro fosse olhar uma segunda vez, para descobrir o que havia acontecido. Talvez, por causa do trauma de sua própria experiência em campo de batalha, ele mesmo não tinha ido verificar. Mais uma vez o irmão retornou dizendo não ter visto nada.
Enquanto isso, alguns dos soldados de infantaria abandonavam suas espadas e se atiravam no rio, onde o inimigo - refrescado, levemente armado, sobre montarias acostumadas com o calor - os perseguia, agitando as águas no raso e matando um a um.
Jean de Brienne lutou furiosamente tentando proteger a retirada de seu exército. Em uma cena que remonta às façanhas sangrentas descritas no conhecido épico A Chanson de Roland, supostamente Brienne se viu diante de um "pagão" gigante, que empunhava um porrete e destroçava cristãos por todos os lados, e cortou-o em dois, da cabeça para baixo, com apenas um movimento de espada. Os cavaleiros das ordens militares - cavaleiros Templários, Hospitaleiros e Teutônicos - e vários condes e cavaleiros vindos da França e de Pisa juntaram-se a ele, desacelerando o ataque inimigo. Mas a perseguição continuou por todo o caminho até os limites do acampamento cruzado, com os cavaleiros tentando proteger a horda de soldados cristãos que fugia por trás da trincheira de proteção e do muro de madeira. Jean de Brienne, que havia tido tantas dúvidas sobre a batalha, foi atingido e quase morreu queimado pelo fogo grego.
Francisco pediu para o seu irmão que olhasse uma terceira vez, para ver o que estava acontecendo. "Que visão!", escreveu Tomás de Celano. "Todo o exército cristão bateu em retirada e fugiu da batalha, trazendo consigo a vergonha em vez do triunfo. O massacre foi tão grande que contabilizados os mortos e os levados em cativeiro, o número de nossas forças foi reduzido a seis mil".
Outros relatos estabelecem o número de perdas dos cruzados entre 2 mil e 4300 homens, incluindo a perda de centenas de cavaleiros de elite que protegiam a retaguarda, além de uma galé inteira que levava duzentos homens. Dois bispos franceses, o chefe de gabinete da França e seu filho, o nobre francês Miles de Beauvais e seu irmão André de Nanteuil, e muitos aristocratas, estavam entre os milhares de cristãos capturados. Eles foram levados a uma prisão dentro de um castelo que pertencia ao sultão. Dentre os disciplinados Templários - os últimos cristãos a retornarem através das defesas até o acampamento - trinta e três homens foram mortos.

Paul Moses   

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