19 de dezembro de 2016

Pedagogia da força bruta


A desenvoltura com que se mandava espancar e assassinar, prática tacitamente aceita em todas as camadas sociais, é característica da violência que reinou em Pernambuco na segunda metade do século XVII, sem paralelo com outras fases tumultuosas da sua história. Classificar de violenta uma sociedade escravocrata pode parecer tautológico, uma vez que a compulsão inerente ao regime de trabalho permeia irresistivelmente toda a trama social: vida pública e vida privada, relações entre raças, sexos e idades. Mas o gosto e até a volúpia do uso da força afiguram-se ainda mais vivos neste do que em outros períodos - rescaldo do quarto de século de conflito e ocupação holandesa e da desorganização econômica e social, para não mencionar outras guerras, a dos Palmares e a do Açu. Nos anos 1670, o governador Aires de Souza e Castro detectara uma verdadeira pedagogia da força bruta: "Nesta terra, se mata gente com uma facilidade que creio que os pais ensinam os filhos a isso como as maiores obrigações".
Das porteiras de engenho para dentro, o emprego da violência da parte dos poderosos estava implicitamente legitimado, a menos que atingisse extremos tais como no caso célebre de Fernão Barbalho Bezerra, que, com a coadjuvação dos filhos, massacrou a mulher, as filhas e um sobrinho, devido à uma imaginária questão de honra, sendo executado na Bahia. Das porteiras de engenho para fora, só esporadicamente o uso da força caía sob a alçada da justiça d'El Rei, muitas vezes impotente, até entrado o século XVIII, para reprimir com um mínimo de eficácia as demasias de indivíduos que os magistrados costumavam designar por régulos e em quem enxergavam o grande obstáculo à imposição do poder da metrópole.
Embora fosse frequente puxar-se a espada durante discussões acaloradas (que os governadores procuravam coibir por meio de providências rotineiras), a documentação oferece um único exemplo de duelo, o qual, porém, não deve ser confundido com a ocorrência de desafios armados, frequentemente envolvendo de cada lado grupos de três ou mais pessoas. No tocante às desavenças entre indivíduos de diferente posição social, a ética senhorial, fossilizada na península Ibérica, ou residual na França (como na surra mandada aplicar a Voltaire por marido ciumento), permitia ao superior desforrar-se de ofensa feita por gente subalterna por intermédio de outra pessoa da mesma condição. Atitude, aliás, consagrada no Quixote que, no capítulo XVIII da primeira parte, escusou-se de desagravar Sancho Pança das afrontas sofridas às mãos de gente vil como ele, com a justificação de que as leis da cavalaria proibiam-no de revidar em quem não fosse parte dela, exceto em defesa da própria vida. 
Também no Reino era corriqueira a prática de mandar espancar ou matar, uma vez que a vendeta e outras formas de justiça clânica ou privada sobreviveriam por mais tempo na Europa meridional e católica, ao contrário das sociedades no norte da Europa, onde o duelo compaginava-se com a emergente ética individualista. Ainda no derradeiro quartel do século XVIII, Arthur William Costigan observava serem os portugueses refratários ao duelo, cuja moda, aliás, só vingará entre eles no século seguinte, assim mesmo restrita aos estratos superiores ou europeizados da população. Narrava o viajante inglês que, tendo certo oficial de Sua Majestade Britânica se desentendido com um militar lusitano acerca da venda de um cavalo, em vão tentara persuadi-lo a resolver a querela por aquele meio. O português não via motivo para comportar-se segundo os costumes de fora, achando preferível e, em todo caso, menos arriscado resolver o assunto da maneira comumente praticada no seu país, a qual consistia em empreitar a eliminação do desafeto.
Para referir apenas o episódio mais célebre, não foi outro o método utilizado pelos Távora para se despicarem das incursões amorosas d"El Rei D. José I na família. No Portugal setecentista, a alta nobreza podia recorrer eventualmente ao duelo, mas o espancamento por criados ou homens de mão (os bravi da Itália barroca) continuava a ser mais popular e até empregado por diplomatas estrangeiros, como na escandalosa briga entre o embaixador e o cônsul ingleses no reinado de D. João V. 
Para fins de revide ou coação física, nossa sociedade escravocrata instrumentalizou o elemento servil, sob a forma dos cabras de bagaceira, verdadeiras tropas de choque que intervinham nos frequentes conflitos em torno de terras e de engenhos, como na disputa acerca do engenho do Meio, que, durante o governo de Montebelo, quase degenerou em batalha campal. A um sobrinho de André Vidal de Negreiros, Antônio Curado Vidal, acusava-se de ter sido mandante de onze mortes, inclusive a da madrasta, a de dois parentes dela e a do seu próprio genro. Afortunados haviam sido o cunhado, que escapara com vida de uns tiros que lhe mandara disparar, e certo letrado que sofrera cutiladas devido à redação de papéis desairosos contra seu ilustre tio. Antônio Curado ordenou ademais a mutilação de um escravo tocador de charamela. Todos esses delitos, que ficaram impunes nem impediram seu mandante de falecer no cargo de alcaide-mor de Olinda, haviam sido invariavelmente cometidos por escravos. A única atrocidade consumada pessoalmente por Antônio Curado consistiu em capar um mulato. Não se conclua, porém, tratar-se de personalidade aberrante. Outras figuras do mesmo estofo desfilam impávidas pela documentação, como em vida desfilaram pela capitania.
Ao invés da sociedade burguesa, que individualiza a desavença, as sociedades do Antigo Regime, ao metamorfoseá-la em questão de honra, tornavam-na apta a envolver a parentela inteira. Atitude válida inclusive entre aqueles grupos de que não se supunha encarnassem o pundonor, mas seu oposto, a diligência e a manha, como eram os homens de negócio. Quatro mercadores importantes do tempo de Montebelo encontram-se implicados numa pendência à espada. Uma questão de propriedade, por exemplo, raramente continuava sendo uma questão de propriedade. A mutação pode ser observada mercê do acaso arquivístico que, entre tantos acontecimentos do gênero, preservou a devassa sobre o assassinato de Roque Gomes Pais (1687).
Ele cavalgava pela estrada do seu engenho em Itamaracá, quando lhe dispararam uma espingarda. A tocaia fora bem planejada, pois na hipótese de errar-se o alvo, uma segunda cilada havia sido disposta mais adiante. Logo se espalhou o rumor de que o mandante fora Leão Falcão de Melo, a cujo sogro pertencera a propriedade. Como "poderoso caballero es Don Dinero", o engenho, gravado de dívidas, fora arrematado por quem dera mais, vale dizer, Roque Gomes Pais, reinol e provavelmente mercador, razões adicionais para ofender os brios da família do antigo senhor. Desejando adquiri-lo por motivos sentimentais, Leão Falcão e sua mulher, Isabel de Moura, moveram-lhe processo, enquanto d. Isabel acomodava-se na casa-grande. Mas como Roque tivesse relações no Recife, obteve concurso de força armada a fim de expulsá-la. O despejo foi indecoroso, entoando-se cantigas debochativas e retirando-se d. Isabel sob apupos e descomposturas. Roque também compôs um soneto satírico em que, com a arrogância de novo-rico, chamava Leão de "fidalgo de borra", ou fidalgo de merda em português do século XVII.
O desacato levou a melhor sobre as hesitações de Leão Falcão de Melo, a quem a furibunda consorte pressionava: "enjoada, dizia que não havia de aparecer entre gente, assim afrontada", jurando ao marido que se Roque Gomes Pais não fosse eliminado, "não havia de meter mais o pé com ela na cama". Consoante a lógica do crime de honra, que exige a divulgação da autoria de modo a lavar a reputação do ofendido, Leão gabou-se publicamente do fato. Preso, o juiz municipal, devidamente subornado, acabou libertando-o, o que lhe deu a ocasião de praticar mais um desmando, ao reter em cárcere privado certo indivíduo que se recusava a casar com uma mulata de sua propriedade e particular estima.
Intimado a soltá-lo, Leão e seus homens reagiram à mão armada. Câmara Coutinho assumira recentemente o governo de Pernambuco e o incidente vinha a calhar a quem se propunha a dar lição definitiva nos régulos da terra. Leão Falcão de Melo terminou a existência numa enxovia, vítima da febre amarela. Graças à posição de Roque Gomes Pais, seu assassinato e a sua escamoteação judiciária haviam chegado ao conhecimento da metrópole. Confiada nova devassa ao dr. Ramires de Carvalho, ela indicou os principais responsáveis. A d. Isabel, que voltara a casar-se, não foi difícil refugiar-se no interior, mas seu cunhado, Pedro Marinho Falcão, e um sobrinho, que tinham participado da empreitada, pagaram a fatura.
Questões de dívidas também se metamorfoseavam em questões de honra; e o credor que cometesse a imprudência de cobrá-las podia não regressar da perigosa jornada, mesmo quando munido de carta de seguro da autoridade judiciária. A um desses ousados, que fora a Penedo, derrubaram-lhe do cavalo a tiros e o acabaram a punhaladas. Daí que os mercadores preferissem ficar no Recife, recorrendo aos meios legais, apesar da sua ineficiência e lentidão, embora também ali ou em Olinda não se estivesse a salvo de vingança pessoal - mesmo quando se era o próprio bispo. O primeiro deles, d. Estêvão Brioso de Figueiredo, abandonou a diocese e regressou ao Reino depois de um tiro de espingarda disparado contra a janela do paço episcopal, onde à noite costumava espairecer. Anteriormente, haviam atirado com bacamarte para o interior da residência do vigário-geral.
Certo advogado do Recife, residente na "outra banda", como era conhecido o bairro de Santo Antônio, foi assassinado quando dormia tranquilamente numa rede que armara, debaixo de umas parreiras, para aliviar-se do calor. Um dos primeiros atos oficiais dos governadores consistia em proibir o porte de arma na cidade e na praça, tal a frequência das rixas. Como houvesse intenção de testar a disposição da autoridade recém-chegada, tais incidentes costumavam acontecer poucos dias transcorridos da portaria ritual, donde o conselho do secretário do governo no sentido de que o novo governador não titubeasse em castigar severamente o primeiro que desafiasse a interdição, pois de tal reação dependeriam o temor e o respeito que lhe mostrariam no decurso da sua gestão.

Evaldo Cabral de Mello          

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...