É impossível reconstruir o caráter, a vida e a verdadeira doutrina do homem que se tornou o Buda. Supõe-se que ele tenha vivido entre 563 e 483 a.C. Entretanto, sua mais antiga biografia, a do cânon páli, começou a ser escrita apenas por volta de 80 a.C.v no Sri Lanka, a cinco séculos e 2400km de distância do verdadeiro cenário histórico. E a vida, a essa altura, tinha-se tornado mitologia - segundo um padrão característico dos Salvadores do Mundo do período entre aproximadamente 500 a.C. e 500 d.C., seja na Índia, como nas lendas dos jainas, ou no Oriente Próximo, como na visão evangélica de Cristo.
Em resumo, essa biografia arquetípica do Salvador fala de:
1. o descendente de uma família real
2. nascido milagrosamente
3. em meio a fenômenos sobrenaturais
4. sobre quem um santo ancião (Simão = Asita), logo após o nascimento, profetizou uma mensagem de salvação do mundo, e
5. cujas façanhas na infância proclamam seu caráter divino.
Na sequência indiana, o herói do mundo:
6. casa-se e gera um herdeiro
7. desperta para sua missão
8. parte, com o consentimento de seus progenitores (no jainismo), ou secretamente (o Buda)
9. para engajar-se em árduas disciplinas na floresta
10. que o confrontam, finalmente, com um adversário sobrenatural, sobre o qual
11. a vitória é alcançada.
O último citado, o Adversário, é uma figura que nos tempos védicos teria aparecido como um dragão anti-social (Vritra) mas, em concordância com a nova ênfase psicológica, representa agora aqueles equívocos da mente que o mergulho do Salvador do Mundo nas suas próprias profundezas traz à luz, e contra os quais ele está lutando, tanto por sua própria vitória quanto para a salvação do mundo.
Na lenda cristã, não há registro dos anos de juventude representados acima pelos estágios 6 a 8. Entretanto, os episódios culminantes (9 a 11) estão representados pelo jejum de quarenta dias no deserto onde se deu o confronto com Satã. Ademais, pode-se argumentar que as cenas infantis da matança dos inocentes pelo rei Herodes, a aviso dos anjos a José e a fuga da Sagrada Família correspondem simbolicamente ao 6, isto é, aos esforços do pai do futuro Buda para frustrá-lo em sua missão, confinando-o no palácio e fazendo-o casar-se depois do que (7) ele foi despertado para sua missão pela visão de um ancião, um homem doente, um cadáver e um iogue, ante o que (8) planejou fugir. Em ambos os casos a narrativa é a de um inimigo régio do espírito, lutando com todos seus recursos - sejam eles maléficos (rei Herodes) ou benignos (rei Suddhodana) - que se mostram vãos para frustrar o infante Salvador em sua predestinada missão.
Seguindo seu encontro cara a cara com o Antagonista e vencendo-o, o Salvador do Mundo:
12. realiza milagres (caminha sobre as águas etc.)
13. torna-se um pregador errante
14. prega a doutrina da salvação
15. a um séquito de discípulos e
16. a uma pequena elite de iniciados
17. um dos quais, menos rápido para aprender do que o resto (Pedro = Ananda), recebe o comando e se torna o modelo da comunidade leiga, enquanto
18. outro, obscuro e traiçoeiro (Judas = Devadatta), está empenhado na morte do Mestre.
Em várias versões da lenda são dadas diferentes interpretações aos temas comuns, coincidindo com as diferenças de doutrina. Por exemplo, 2: enquanto a Virgem Maria concebeu do Espírito Santo, a rainha Maya, mãe do Buda, era uma verdadeira esposa de seu consorte; tampouco o Salvador do Mundo que ela dera à luz era uma encarnação de Deus, o Criador do Universo, mas um jiva reencarnado iniciando a última de suas inumeráveis vidas. Igualmente os itens 10-11: enquanto a vida do Buda atingiu o ápice na sua vitória sobre Mara sob a árvore Bodhi, a lenda cristã transfere a Árvore da Redenção para o estágio 19, isto é, a morte do Salvador, que na vida do Buda não é mais do que uma passagem pacífica no final de uma longa carreira de mestre. Pois o ponto principal do budismo não é - como no antigo sacrifício Soma - a imolação física do Salvador, mas seu despertar (bodhi) para a Verdade das verdades e, em consequência, a libertação (moksa) da ilusão (maya). Por isso, o ponto principal para o indivíduo budista não é se a lenda do Buda corresponde ao que de fato e historicamente ocorreu entre 563 e 483 a.C., mas se serve para inspirá-lo e guiá-lo para a iluminação.
Em resumo, essa biografia arquetípica do Salvador fala de:
1. o descendente de uma família real
2. nascido milagrosamente
3. em meio a fenômenos sobrenaturais
4. sobre quem um santo ancião (Simão = Asita), logo após o nascimento, profetizou uma mensagem de salvação do mundo, e
5. cujas façanhas na infância proclamam seu caráter divino.
Na sequência indiana, o herói do mundo:
6. casa-se e gera um herdeiro
7. desperta para sua missão
8. parte, com o consentimento de seus progenitores (no jainismo), ou secretamente (o Buda)
9. para engajar-se em árduas disciplinas na floresta
10. que o confrontam, finalmente, com um adversário sobrenatural, sobre o qual
11. a vitória é alcançada.
O último citado, o Adversário, é uma figura que nos tempos védicos teria aparecido como um dragão anti-social (Vritra) mas, em concordância com a nova ênfase psicológica, representa agora aqueles equívocos da mente que o mergulho do Salvador do Mundo nas suas próprias profundezas traz à luz, e contra os quais ele está lutando, tanto por sua própria vitória quanto para a salvação do mundo.
Na lenda cristã, não há registro dos anos de juventude representados acima pelos estágios 6 a 8. Entretanto, os episódios culminantes (9 a 11) estão representados pelo jejum de quarenta dias no deserto onde se deu o confronto com Satã. Ademais, pode-se argumentar que as cenas infantis da matança dos inocentes pelo rei Herodes, a aviso dos anjos a José e a fuga da Sagrada Família correspondem simbolicamente ao 6, isto é, aos esforços do pai do futuro Buda para frustrá-lo em sua missão, confinando-o no palácio e fazendo-o casar-se depois do que (7) ele foi despertado para sua missão pela visão de um ancião, um homem doente, um cadáver e um iogue, ante o que (8) planejou fugir. Em ambos os casos a narrativa é a de um inimigo régio do espírito, lutando com todos seus recursos - sejam eles maléficos (rei Herodes) ou benignos (rei Suddhodana) - que se mostram vãos para frustrar o infante Salvador em sua predestinada missão.
Seguindo seu encontro cara a cara com o Antagonista e vencendo-o, o Salvador do Mundo:
12. realiza milagres (caminha sobre as águas etc.)
13. torna-se um pregador errante
14. prega a doutrina da salvação
15. a um séquito de discípulos e
16. a uma pequena elite de iniciados
17. um dos quais, menos rápido para aprender do que o resto (Pedro = Ananda), recebe o comando e se torna o modelo da comunidade leiga, enquanto
18. outro, obscuro e traiçoeiro (Judas = Devadatta), está empenhado na morte do Mestre.
Em várias versões da lenda são dadas diferentes interpretações aos temas comuns, coincidindo com as diferenças de doutrina. Por exemplo, 2: enquanto a Virgem Maria concebeu do Espírito Santo, a rainha Maya, mãe do Buda, era uma verdadeira esposa de seu consorte; tampouco o Salvador do Mundo que ela dera à luz era uma encarnação de Deus, o Criador do Universo, mas um jiva reencarnado iniciando a última de suas inumeráveis vidas. Igualmente os itens 10-11: enquanto a vida do Buda atingiu o ápice na sua vitória sobre Mara sob a árvore Bodhi, a lenda cristã transfere a Árvore da Redenção para o estágio 19, isto é, a morte do Salvador, que na vida do Buda não é mais do que uma passagem pacífica no final de uma longa carreira de mestre. Pois o ponto principal do budismo não é - como no antigo sacrifício Soma - a imolação física do Salvador, mas seu despertar (bodhi) para a Verdade das verdades e, em consequência, a libertação (moksa) da ilusão (maya). Por isso, o ponto principal para o indivíduo budista não é se a lenda do Buda corresponde ao que de fato e historicamente ocorreu entre 563 e 483 a.C., mas se serve para inspirá-lo e guiá-lo para a iluminação.
Joseph Campbell
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