29 de outubro de 2016

Mulher serpente


Moyers: "Vós comestes da árvore da qual ordenei que não comêsseis?" O homem disse: "A mulher que me destes para estar comigo, essa mulher me deu o fruto da árvore e eu comi." Então o Senhor Deus disse à mulher: "Que fizestes vós?" E a mulher disse: "A serpente me enganou e eu comi".
Isso de transferir responsabilidades começou muito cedo.

Campbell: É verdade, e foi muito severo com as serpentes. (...) A serpente é o símbolo da vida desfazendo-se do passado e continuando a viver.

Moyers: Por quê?

Campbell: O poder da vida leva a serpente a se desfazer de sua pele, exatamente como a lua se desfaz da pele para renascer. São símbolos equivalentes. Às vezes a serpente é representada como um círculo, comendo a própria cauda. É uma imagem da vida. A vida se desfaz de uma geração após outra, para renascer. A serpente representa a energia e a consciência imortais, engajadas na esfera do tempo, constantemente atirando fora a morte e renascendo. Existe algo extremamente horrível na vida, quando você a encara desse modo. Com isso, a serpente carrega em si o sentido da fascinação e do terror da vida, simultaneamente.
Além disso, a serpente representa a função primária da vida, sobretudo comer. A vida consiste em comer outras criaturas. Você não pensa muito a respeito quando faz uma boa refeição, mas o que está fazendo é comer algo que há pouco estava vivo. E quando você olha para a bela natureza e vê os passarinhos saltitando daqui para ali... eles estão comendo coisas. Você vê as vacas pastando, elas estão comendo coisas. A serpente é um canal alimentar que se move, isso é tudo. Ela lhe dá aquela sensação primária de espanto, da vida em sua condição mais primitiva. Não há absolutamente o que discutir com esse animal. A vida vive de matar e comer a si mesma, rejeitando a morte e renascendo, como a lua. Este é um dos mistérios que as formas simbólicas, paradoxais, tentam representar.
Agora, em muitas culturas é dada uma interpretação positiva à serpente. Na Índia, mesmo a mais venenosa das serpentes, a naja, é um animal sagrado, e a mitológica Serpente Rei é quem está ao lado do Buda. A serpente representa o poder da vida, engajado na esfera do tempo, e da morte, não obstante eternamente viva. O mundo não é senão a sua sombra - a pele rejeitada.

Moyers: Na história cristã a serpente é o sedutor.

Campbell: Isso representa a recusa em afirmar a vida. Na tradição bíblica que herdamos, a vida é corrupta e todo impulso natural é pecaminoso, a menos que tenha havido circuncisão ou batismo. A serpente é aquele ser que trouxe o pecado ao mundo. E a mulher é quem ofereceu a maçã ao homem. Essa identificação da mulher com o pecado, da serpente com o pecado, e portanto da vida com o pecado, é um desvio imposto à história da criação, no mito e na doutrina da Queda, segundo a Bíblia.

Moyers: A ideia da mulher como pecadora aparece em outras mitologias?

Campbell: Não, não tenho referência disso em parte alguma. O que mais se aproxima talvez seja Pandora, com a caixa de Pandora, mas não se trata de pecado, é apenas confusão. A ideia, na tradição bíblica da Queda, é que a natureza, como a conhecemos, é corrupta, o sexo em si é corrupto, e a fêmea, como epítome do sexo, é um ser corruptor. Por que o conhecimento do bem e do mal foi proibido a Adão e Eva? Sem esse conhecimento, seríamos todos um bando de bebês, ainda no Éden, sem nenhuma participação na vida. A mulher traz a vida ao mundo. Eva é a mãe deste mundo temporal. Anteriormente, você tinha um paraíso de sonho, ali no Jardim do Éden - sem tempo, sem nascimento, sem morte -, sem vida. A serpente, que morre e ressuscita, largando a pele para renovar a vida, é o senhor da árvore primordial, onde tempo e eternidade se reúnem. A serpente, na verdade, é o primeiro deus do Jardim do Éden. Jeová, o que caminha por ali no frescor da tarde, é apenas um visitante. O Jardim é o lugar da serpente. Esta é uma velha, velha história. Existem sinetes sumerianos, que remontam a 3500 a. C., mostrando a serpente, a árvore e a deusa, e esta oferecendo o fruto da vida ao visitante masculino. A velha mitologia da deusa está toda aí. (...) Existe, na realidade, uma explicação histórica baseada na chegada dos hebreus a Canaã e na subjugação do povo de Canaã. A principal divindade desse povo era a Deusa, e, associada à Deusa, estava a serpente. Este é o símbolo do mistério da vida. Os hebreus, orientados na direção do deus masculino, rejeitaram isso. Em outras palavras, existe uma rejeição histórica da Deusa Mãe, implícita na história do Jardim do Éden.

Moyers: Essa história parece ter prestado à mulher um grande desserviço, atribuindo-lhe a responsabilidade pela Queda. Por que recaiu sobre as mulheres a responsabilidade pela Queda?

Campbell: Elas representam a vida. O homem não chega à vida senão através da mulher; é a mulher, portanto, que nos traz a este mundo.
 
Joseph Campbell

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