24 de outubro de 2016

Infelicidade consciente


Cedo ou tarde, o profano tem de sair do estreito casulo da sua feliz ignorância e entrar na zona vastíssima do pensamento e da experiência real. Poucos homens conseguem manter através da vida inteira esse paraíso tranquilo embalado numa ignorância absoluta e integral. A maior parte dos homens normais começam a refletir sobre o "de onde", o "para onde" e o "porquê" do mundo e da vida humana - e toda a reflexão destrói, total ou parcialmente, o edifício do agnosticismo, e, com o desmoronar dos muros do castelo, lá se foi a paz da alma e a tranquilidade do espírito!...
Quanto mais o homem pensa tanto menos sorri, porque todo o pensar gera pesar, e toda a introspecção cria insatisfação... Na zona dos pensamentos puramente intelectuais há poucos ridores - como os há para aquém e para além dessa zona. É que a região do pensamento intelectual é a região dos problemas, e onde há problemas há muitas lágrimas e pouco sorriso.
De maneira que o profano que pensa é, geralmente, um homem conscientemente infeliz - assim como o profano que não pensa é inconscientemente infeliz.
Entretanto, o sentimento da infelicidade é um veneno roaz, que ninguém suporta, indene, por muito tempo. Por isso, o infeliz procura felicidade em mil e mil derivativos, narcóticos, intoxicantes e expedientes de todo gênero. E há tantas coisas e coisinhas interessantes e divertidas, no vasto âmbito do mundo circunjacente... Para o menos exigente, há os prazeres fáceis dos sentidos - e quão grande é a sua variedade e prepotência! Que delícias no plano do comer, do beber e do sexo! Para outros, que excitantes aventuras nas especulações financeiras, nos trabalhos comerciais, industriais, científicos, sociais! Que inebriante sedução às mesas de jogo e nos bastidores da política! Que suaves carícias nos causam as auras tépidas da fama, dos elogios, da celebridade! E quão fascinantes são, para muitos, as viagens a terras longínquas e a povos desconhecidos!
De maneira que não faltam ao homem que não tolere o vácuo do próprio Ego ensejos de encontrar plenitudes fora de si mesmo e camuflar com as riquezas externas a pobreza do seu interior. Nessa permanente fuga diante de si mesmo encontram muitos profanos conscientemente infelizes um ersatz, um sub-rogado, pela felicidade que lhes falta. Embora essas coisas externas não os façam, propriamente, felizes, pelo menos lhes diminuem e suavizam, temporariamente, a consciência da infelicidade - e a pobre criança de sua alma, soluçando por algo que ignora, acalma, por momentos, a sua dolorosa nostalgia e inquietude metafísica...
Alguns desses profanos pensantes lançam mão de outro expediente para fugir das secretas torturas da sua profunda infelicidade: arremetem furiosamente contra o próprio objeto desse mal-estar, investem contra a causa do mesmo, procuram quebrar de vez o ominoso espelho em que esse horripilante monstro da inquietude metafísica mostra a sua feia carranca. A exemplo de Voltaire, propõem-se a provar, se não com argumentos acadêmicos, ao menos com gargalhadas de cinismo, que Deus não existe e que a vida eterna é um mito. Como a avestruz no deserto - que, segundo dizem, quando perseguida pelo caçador esconde a cabeça debaixo de areia, julgando não ser vista por quem ela não vê -, tentam esses profanos insinceros provar a não-existência daquilo que os torna tão infelizes; pois, uma vez provado o caráter fictício e irreal da causa do mal, segue-se que também os efeitos não passam de simples ficção e alucinação.
É deveras notável até que ponto possa um homem acreditar na "verdade" das suas próprias mentiras, quando corajosas e indefinidamente repetidas! Uma afirmação que, da primeira vez, lhe era 100% falsa, depois da centésima repetição acaba por lhe parecer 50% verdadeira, e depois da milésima ou milionésima repetição adquire foros de 100% verdadeira - tamanha é a força da auto-sugestão, sobretudo quando a serviço de uma imperiosa necessidade moral!
A mais difícil das coisas difíceis é a sinceridade para conosco mesmos - e a falta dessa auto-sinceridade é a razão por que há tão poucos homens realmente espirituais. Procuramos mil e uma evasivas e subterfúgios, desde os mais sérios até os mais ridículos, para não aceitar a verdade sobre nós mesmos - por quê? Porque a aceitação real e prática dessa verdade implica algo parecido com uma dolorosa intervenção cirúrgica nos tecidos vivos do nosso próprio Eu - e ninguém gosta de ser operado...
Digamo-lo desde já: o início de uma vida de comunhão com Deus é indizivelmente doloroso e tremendamente difícil; é uma "porta estreita" e um "caminho apertado"; é uma "morte" - "se o grão de trigo não morrer"... (Jesus); e até uma "morte cotidiana" - "pelo regozijo que tenho em Cristo Jesus, protesto que morro todos os dias" (Paulo de Tarso). Disto sabem todos os grandes iniciados, esses homens integralmente sinceros consigo mesmos.
 
Huberto Rohden

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