20 de outubro de 2016

Homem sol, mulher lua


A alternância diária entre luz e escuridão é outro fator inevitável de experiência, do qual advém um considerável valor dramático, resultante do fato de que à noite o mundo dorme, os perigos espreitam e a mente mergulha no mundo dos sonhos, diferindo em sua lógica do mundo da luz. Nos sonhos, os objetos brilham por si mesmos, sem iluminação externa e, além disso, são de uma substância sutil, capaz de transformação rápida e mágica, de efeitos assustadores e de locomoção não mecânica. Não pode haver dúvida alguma de que o mundo dos mitos tenha se saturado de sonhos ou de que os homens já sonhavam quando eram pouco mais que macacos. E, como observou Géza Róheim, "não pode haver diversas maneiras culturalmente determinadas de sonhar, exatamente como não há duas maneiras de dormir".
O alvorecer e o despertar deste mundo dos sonhos sempre devem ter sido associados com o sol e o nascer do sol. Os medos e fascínios noturnos são dissipados pela luz, que sempre foi sentida como vindo de cima, provendo direção e orientação. As trevas, por sua vez, e o peso, a força da gravidade e o interior escuro da terra, da selva ou do mar profundo, assim como certos medos e prazeres extremamente intensos, durante milênios devem ter constituído uma vigorosa síndrome da experiência humana, em contraste com o voo luminoso da esfera solar que desperta o mundo para e através de imensuráveis alturas. Daí ter que se considerar como inevitável, no sentido de um princípio estruturador do pensamento humano, a polaridade entre luz e trevas, acima e abaixo, orientação e perda de orientação, confiança e medos (polaridade que todos nós conhecemos na esfera do pensamento e sentimento e podemos encontrar, semelhante, em muitas partes do mundo). Esse princípio pode ou não estar estabelecido dentro de nós como um "isomorfo"; mas, de qualquer maneira, é uma experiência geral e profundamente conhecida.
A lua, além do mais, e o espetáculo do céu à noite, as estrelas e a Via Láctea, constituíram desde o princípio uma fonte de maravilhamento e de impacto profundo. Mas há, de fato, uma influência física da lua sobre a terra e suas criaturas, sobre as marés e nossos próprios ritmos interiores, influência há muito tempo reconhecida conscientemente e experimentada de modo subliminar. A coincidência do ciclo menstrual com o da lua é uma realidade física estruturadora da vida humana e uma curiosidade que tem sido observada com admiração. É provável que a noção básica de uma relação estruturadora da vida entre o mundo celestial e o do homem tenha derivado da compreensão, tanto em termos de pensamento quanto de experiência, da força do ciclo lunar. Também o mistério da morte e ressurreição da lua, bem como sua influência sobre os cães, lobos e raposas, chacais e coiotes, que tentam cantar para ela. Esse eterno e maravilhoso disco de prata navegando entre as belas estrelas e atravessando rapidamente as nuvens, transformando a própria vida desperta em uma espécie de sonho, tem sido, na formação dos mitos, uma força e uma presença ainda mais poderosa que a do sol. Sol que diariamente apaga a luz da lua, seu mundo estelar e sons noturnos, os ânimos eróticos e a mágica do sonho.
O contraste nas formas físicas e esferas de competência entre o masculino e o feminino, certamente é outro universal da experiência humana; e também precisamos, neste contexto, contar com o "encontro instintivo" entre os dois, que torna possível - ou melhor, é inevitável e, por vezes, mesmo contra o discernimento - o despertar sincrônico dos dois corpos para o curioso entrosamento mútuo que os freudianos gostam de chamar de "reapresentação da cena original" e que para muitos é a consumação do apetite ao qual é mais difícil resistir. (...) Vamos apenas observar que o perfume das flores, o embelezamento do corpo, a noite, os encontros furtivos, a música, a troca de prendas, a angústia, o remorso, a rivalidade, o ciúme, o assassinato e a ópera toda podem ser encontrados na história humana até onde nossos olhos conseguem enxergar.
E temos a volumosa literatura da escola freudiana para nos assegurar que tanto as analogias óbvias como as veladas, os trocadilhos e inflexões pelos quais o sexo, os órgãos sexuais e o ato sexual estão enredados em nossos pensamentos, são conhecidos em todas as tradições do mundo, seja oral ou literariamente. Na mitologia, a imagem do nascimento de dentro do útero é um dado extremamente comum sobre a origem do universo e a relação sexual que deve tê-lo precedido é representada em ato ritual assim como em história. Além do mais, o funcionamento misterioso (poder-se-ia dizer mágico) do corpo feminino em seu ciclo menstrual, na cessação do ciclo durante o seu período de gestação e nas dores do parto - e o surgimento, então, de um novo ser, certamente causaram profundas estampagens na mente. O medo do sangue menstrual e o isolamento das mulheres durante as regras, os ritos do nascimento e toda a tradição de magia associada com a fecundidade humana, tornam evidente que estamos no campo de um dos maiores centros de interesse da imaginação humana. Nas primeiras artes rituais, a forma feminina nua é extremamente proeminente, enquanto a masculina é normalmente paramentada, ou mascarada, como xamã ou caçador desempenhando alguma função. O medo da mulher e o mistério da maternidade foram para o homem forças de estampagem não menos significativas que os medos e mistérios do mundo da própria natureza.
E, nas mitologias e tradições rituais de toda a nossa espécie, podem ser encontrados inúmeros exemplos dos esforços inexoráveis do homem para relacionar-se efetivamente - à maneira, por assim dizer, da cooperação antagônica - com essas duas forças estranhas e também intimamente constrangedoras: a mulher e o mundo.

Joseph Campbell

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...