26 de abril de 2019

Nhonhô


Diz-se que entre nós a escravidão é suave, e os senhores são bons. A verdade, porém, é que toda a escravidão é a mesma, e quanto à bondade dos senhores esta não passa da resignação dos escravos. Quem se desse ao trabalho de fazer uma estatística dos crimes ou de escravos ou contra escravos; quem pudesse abrir um inquérito sobre a escravidão e ouvir as queixas dos que a sofrem; veria que ela no Brasil ainda hoje é tão dura, bárbara e cruel, como foi em qualquer outro país da América. Pela sua própria natureza a escravidão é tudo isso, e quando deixa de o ser, não é porque os senhores se tornem melhores, mas, sim, porque os escravos se resignaram completamente à anulação de toda a sua personalidade.
Enquanto existe, a escravidão tem em si todas as barbaridades possíveis. Ela só pode ser administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem cegamente e sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a sua ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror absoluto infundido na alma do homem.
Suponha-se que os duzentos escravos de uma fazenda, não queiram trabalhar; que pode fazer um bom senhor para forçá-los a ir para o serviço? Castigos estritamente moderados talvez não deem resultado: o tronco, a prisão, não preenchem o fim, que é o trabalho; reduzi-los pela fome, não é humano nem praticável; está assim o bom senhor colocado entre a alternativa de abandonar os seus escravos, e a de subjugá-los por um castigo exemplar infligido aos principais dentre eles.
O limite da crueldade do senhor está, pois, na passividade do escravo. Desde que esta cessa, aparece aquela; e como a posição do proprietário de homens no meio do seu povo sublevado seria a mais perigosa, e, por causa da família, a mais aterradora possível, cada senhor, em todos os momentos da sua vida, vive exposto à contingência de ser bárbaro, e, para evitar maiores desgraças, coagido a ser severo. A escravidão não pode ser com efeito outra coisa. Encarreguem-se os homens mais moderados de administrar a intolerância religiosa e teremos novos autos de fé tão terríveis como os da Espanha. É a escravidão que é má, e obriga o senhor a sê-lo. Não se lhe pode mudar a natureza. O bom senhor de um mau escravo seria mais do que um acidente feliz; o que nós conhecemos é o bom senhor do escravo que renunciou à própria individualidade, e é um cadáver moral; mas esse é bom porque trata bem, materialmente falando, o escravo - não porque procure levantar nele o homem aviltado nem ressuscitar a dignidade humana morta.
A escravidão é hoje no Brasil o que era em 1862 nos estados do Sul da União, o que foi em Cuba e nas Antilhas, o que não pode deixar de ser, como a guerra não pode deixar de ser sanguinolenta: isto é, bárbara.

Joaquim Nabuco

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