Na epopeia homérica, Ulisses desceu ao mundo subterrâneo para se aconselhar com os mortos, e lá, umbria terra de Plutão e Perséfone, encontrou as sombras de seus antigos companheiros e amigos que haviam sido mortos no cerco de Troia, ou falecido durante os anos que se seguiram à conquista da cidade. Eles eram apenas sombras naquele reino de penumbras; não obstante, cada um podia ser reconhecido de imediato porque guardava as mesmas feições que havia tido na terra. Aquiles declarou haver preferido a vida dura e triste de um obscuro camponês à plena luz do dia entre os vivos, à melancólica monotonia de sua atual semi-existência como o maior dos heróis entre os mortos; apesar disso, ele era exatamente o mesmo. A fisionomia, a máscara da personalidade, havia sobrevivido à separação do corpo e ao longo exílio da esfera humana sobre a face da terra.
Em parte alguma da epopeia grega encontramos a ideia de que um herói morto tenha sido privado da identidade de sua anterior existência temporal. Os gregos da época homérica não consideravam a possibilidade de que alguém pudesse perder a personalidade através da morte - a lenta dissolução, evaporação e o desaparecimento final da individualidade histórica. Isto tampouco ocorreu à mentalidade cristã medieval. Dante, como Ulisses, foi um peregrino do além. Conduzido por Virgílio entre os círculos do inferno e do purgatório, subiu às esferas e por todo lugar, em todo o percurso de sua viagem, viu e conversou com amigos e inimigos pessoais, heróis míticos e grandes figuras da história. Todos, sem dificuldade, foram reconhecidos por ele, e todos satisfizeram sua insaciável curiosidade voltando a contar suas biografias, revivendo, mediante demorados relatos e argumentos, os minuciosos detalhes de suas frívolas e curtas existências. Suas antigas personalidades pareciam haver-se conservado muito bem através de suas longas perambulações pela vastidão do infinito.
Embora definitiva e eternamente separados dos breves momentos de suas vidas terrenas, eles ainda estavam preocupados com as vicissitudes e aborrecimentos de suas biografias, perseguidos por suas culpas que, como sombras, aderiam a eles nas formas simbólicas das respectivas punições. A personalidade mantinha todos em suas garras, tanto os santos do céu na sua glória, quanto os torturados e sofridos habitantes do inferno; porque a personalidade, segundo os cristãos medievais, não se perdia com a morte nem haveria de desaparecer uma vez purgada pelas experiências do além. Ao invés disso, a vida além túmulo seria, antes, uma segunda manifestação e experiência da essência da própria personalidade, realizada em uma escala mais ampla, num estilo mais livre, e com um desdobramento evidente da natureza e implicações das virtudes e dos vícios.
Para a mentalidade ocidental, a personalidade é eterna, indestrutível e indissolúvel. Esta é a ideia básica na doutrina cristã da ressurreição do corpo, sendo que tal ressurreição significa a reconquista de nossa estimada personalidade, agora em uma forma purificada, digna de se apresentar ante a majestade do Todo-poderoso. E supõe-se que esta personalidade continuará a existir para sempre - muito embora, por uma curiosa falta de lógica, não se acredite que haja existido em algum lugar, em qualquer estado ou forma, antes do nascimento carnal do indivíduo mortal. A personalidade não existia nas esferas extra-humanas, desde toda a eternidade, antes de sua manifestação temporal na terra. Afirma-se que passa a existir com o ato mortal da procriação; no entanto, também se afirma que prosseguirá depois de abandonar a estrutura mortal procriada: temporal em seu início, imortal em seu fim.
O termo "personalidade" deriva da palavra latina persona. Literalmente, persona significa máscara - que o ator do teatro grego ou romano usava sobre a face; a máscara "através" (per) da qual ele "recita" (sonat) sua parte. A máscara é o que porta as feições ou caracterizações do papel, os traços de herói ou heroína, de serviçal ou mensageiro, enquanto o ator, por trás dela, permanece anônimo, como um ser desconhecido, intrinsecamente separado do drama, onde sofrimentos e paixões representados não o atingem de maneira direta. Originalmente o termo persona, no sentido de "personalidade", deve ter significado que os indivíduos só estão personificando aquilo que parecem ser. A palavra indica que a personalidade é apenas a máscara do papel que cada um tem de representar na comédia ou na tragédia da vida, e que não deve ser identificada com o ator. Não é uma manifestação de sua verdadeira natureza, mas um véu. Todavia, a concepção ocidental - que se originou com os próprios gregos e, a seguir, foi desenvolvida pela filosofia cristã - anulou a distinção, implícita no termo, entre a máscara e o ator cuja face oculta. Ambos, por assim dizer, tornaram-se idênticos. Terminado o drama não se pode tirar a "persona"; esta fica colada quando da morte e na vida do além. O ator ocidental, tendo se identificado de maneira absoluta com a personalidade que representou durante sua existência no teatro do mundo, é incapaz de retirá-la quando chega o instante de partir, e assim a conserva indefinidamente, por milênios, e até por eternidades, ainda que a peça já tenha acabado. Perder sua "persona" significaria para ele perder toda esperança de um futuro além da morte. Para ele, a máscara se fundiu e se confundiu com sua essência.
Por outro lado, a filosofia indiana insiste na diferença e acentua a distinção entre o ator e seu papel. Enfatiza continuamente o contraste entre a existência do indivíduo que se manifesta e o ser real do ator anônimo, oculto, velado e encoberto pelas vestes do drama. Na verdade, desenvolver uma técnica segura para manter clara a linha que separa ambos (ator e papel) tem sido um dos esforços dominantes do pensamento indiano através dos tempos. Durante séculos foram se sucedendo as meticulosas definições de suas relações e formas de ajuda mútua; igualmente perduraram os esforços - práticos, sistemáticos e corajosos - para ultrapassar os limites de uma e penetrar nos insondáveis domínios da outra, fazendo uso, acima de tudo, dos numerosos processos introspectivos do yoga. Penetrando e dissolvendo as camadas da personalidade manifesta, a consciência inexoravelmente introvertida perfura a máscara e, por fim, descartando-a em todos os seus estratos, chega ao anônimo e curiosamente indiferente ator de nossa vida.
Embora sejam encontradas, nos textos hindus e budistas, vívidas descrições dos tradicionais infernos e purgatórios, onde espantosos detalhes são minuciosamente apresentados, a situação nunca é a mesma que vemos nos mundos do além criados por Dante e Homero, repletos de celebridades mortas há muito tempo e que, não obstante, ainda conservam todas as características de suas máscaras pessoais. Nos infernos orientais, as multidões de seres que agonizam em meio a tormentos não guardam os traços de suas individualidades terrenas. Alguns podem recordar haverem estado numa certa parte e até saber qual foi a ação que provocou a punição atual; contudo, geralmente, todos estão perdidos e afundados em suas presentes misérias. Assim como qualquer cachorro está absorvido no estado de ser precisamente o cachorro que é, fascinado pelos detalhes de sua vida atual - e como nós mesmos estamos em geral enfeitiçados por nossas presentes existências - assim também estão os seres nos infernos hindus, jainas e budistas. São incapazes de lembrar qualquer estado anterior, qualquer veste usada numa existência prévia, identificam-se exclusivamente com o que são agora. E esta é, desde já, a razão porque estão no inferno.
Uma vez que esta ideia indiana se apresenta à consciência, imediatamente surge a questão: "Por que estou obrigado a ser o que sou? Por que tenho que usar a máscara desta personalidade que penso e sinto ser eu mesmo? Por que tenho que suportar este destino, as limitações, ilusões e ambições deste papel peculiar que estou sendo impelido a representar? Ou, por que, se já deixei uma máscara atrás de mim, estou novamente com outra frente à ribalta, representando outro papel em um cenário diferente? O que me compele a continuar deste modo, sendo sempre algo exclusivo, um indivíduo, com todos estes defeitos e experiências? Onde e como poderei alcançar outro estado, aquele de não ser algo particular, assediado por limitações e qualidades que obstruem meu ser puro e sem limites? Pode alguém se converter em algo livre de todo matiz e cor específicos, não definido por uma forma, não limitado por qualidades, algo que não seja específico e, portanto, não sujeito a nenhuma vida específica?"
Estas são as perguntas que conduzem ao ascetismo e à prática do yoga. Brotam de um melancólico cansaço da vontade de viver - a vontade fatigou-se, por assim dizer, das perspectivas deste interminável "antes e depois", como se um ator repentinamente se enfastiasse de sua carreira. Uma carreira condenada ao curso intemporal de transmigrações: um passado sem lembranças e um futuro sem projetos! "Por que me preocupo em ser o que sou: homem, mulher, camponês, artista, pobre ou rico? Se já personifiquei, sem me recordar, todos os papéis e atitudes possíveis - uma e outra vez num passado irrecuperável e em mundos que se dissolveram - por que continuo?"
Sem dúvida, seríamos levados a detestar a comédia da vida se não estivéssemos cegos, fascinados e iludidos com os detalhes do próprio papel que representamos. Se não estivéssemos enfeitiçados pelo argumento do drama que nos mantém prisioneiros, sem dúvida desistiríamos, abandonaríamos a máscara, a veste, as partes, a operação toda. Não é difícil imaginar por que, para alguns, poderia tornar-se simplesmente enfadonho prosseguir com este compromisso permanente, representando uma personagem após outra nesta interminável trupe da vida.
Quando se sente a sensação de fastio ou náusea (como aconteceu repetidas vezes na longa história da Índia), então a vida se revolta, se rebela contra sua mais elementar tarefa, ou dever, de seguir automaticamente para a frente. Ao passar do individual para o coletivo, este impulso provoca a fundação de ordens ascéticas, como aquelas das comunidades jainas e budistas de monges sem lar: exércitos de atores renegados, heroicos desertores, andarilhos e auto-exilados da farsa universal que é a força da vida.
Se estes renegados estivessem preocupados em se justificar, argumentariam assim:
"Por que teria que nos importar o que somos? Que verdadeiro interesse temos no que diz respeito a todos aqueles papéis que as pessoas estão continuamente obrigadas a representar? É realmente lamentável o estado daquele que ignora já ter representado toda sorte de personagens, muitas vezes - como mendigo, rei, animal, deus -, e que a vida do ator não é melhor num papel do que em outro. Porque o fato mais óbvio acerca do compromisso infindável é que todos os objetos e situações da trama já foram propostos e perduram em repetição interminável através dos milênios. As pessoas devem estar completamente cegas para se submeterem sem descanso ao feitiço das mesmas fascinações de outrora; cativas das tentações aliciantes que têm seduzido todas as criaturas que já viveram; saudando com expectativa - como a uma nova e emocionante aventura - os mesmos fatos banais que decepcionaram indefinidamente seus desejos e esperanças, apegando-se a esta ou àquela ilusão. Tudo isto é apenas o resultado do fato de que o ator segue representando papéis, cada um deles aparentemente novo, mas que já foi desempenhado muitas vezes, embora com roupagens ligeiramente diferentes e com outros elencos. É óbvio, trata-se de um impasse ridículo. A mente foi enfeitiçada, apanhada ardilosamente pelas pressões de uma cega força vital que redemoinha as criaturas numa incessante corrente cíclica. E por quê? Quem ou o que produz isto? Quem é o tolo que mantém esta absurda comédia no palco?"
A resposta que deveria ser dada a quem não fosse capaz de encontrá-la por si mesmo seria simplesmente esta: o homem, o próprio homem, cada indivíduo. E a resposta é evidente porque cada um segue fazendo o que sempre tem feito, imaginando que faz algo diferente. Seu cérebro, sua língua, seus órgãos de ação estão incorrigivelmente possuídos pelo impulso de fazer algo novo - e o indivíduo o faz. É assim que ele constrói novas tarefas para ele próprio, contaminando-se a cada instante com novas partículas de matéria cármica, que penetram em sua natureza, afluem a sua mônada vital, mancham sua essência e obscurecem sua luz. Estes envolvimentos o acorrentam a uma patética existência de desejos e ignorâncias, na qual guarda com veneração sua personalidade transitória como se fosse algo substancial - aderindo ao breve feitiço da confusa vida, única coisa que conhece, e protegendo com zelo a momentânea passagem da existência individual entre o nascimento e a pira funerária -, deste modo prolonga inconscientemente o período de sua escravidão pelas estradas indefinidas do futuro. Em incessante busca do que concebe ser seu próprio bem-estar e felicidade, ou os de algum outro, apenas consegue estreitar seus próprios grilhões e os dos demais.
Em parte alguma da epopeia grega encontramos a ideia de que um herói morto tenha sido privado da identidade de sua anterior existência temporal. Os gregos da época homérica não consideravam a possibilidade de que alguém pudesse perder a personalidade através da morte - a lenta dissolução, evaporação e o desaparecimento final da individualidade histórica. Isto tampouco ocorreu à mentalidade cristã medieval. Dante, como Ulisses, foi um peregrino do além. Conduzido por Virgílio entre os círculos do inferno e do purgatório, subiu às esferas e por todo lugar, em todo o percurso de sua viagem, viu e conversou com amigos e inimigos pessoais, heróis míticos e grandes figuras da história. Todos, sem dificuldade, foram reconhecidos por ele, e todos satisfizeram sua insaciável curiosidade voltando a contar suas biografias, revivendo, mediante demorados relatos e argumentos, os minuciosos detalhes de suas frívolas e curtas existências. Suas antigas personalidades pareciam haver-se conservado muito bem através de suas longas perambulações pela vastidão do infinito.
Embora definitiva e eternamente separados dos breves momentos de suas vidas terrenas, eles ainda estavam preocupados com as vicissitudes e aborrecimentos de suas biografias, perseguidos por suas culpas que, como sombras, aderiam a eles nas formas simbólicas das respectivas punições. A personalidade mantinha todos em suas garras, tanto os santos do céu na sua glória, quanto os torturados e sofridos habitantes do inferno; porque a personalidade, segundo os cristãos medievais, não se perdia com a morte nem haveria de desaparecer uma vez purgada pelas experiências do além. Ao invés disso, a vida além túmulo seria, antes, uma segunda manifestação e experiência da essência da própria personalidade, realizada em uma escala mais ampla, num estilo mais livre, e com um desdobramento evidente da natureza e implicações das virtudes e dos vícios.
Para a mentalidade ocidental, a personalidade é eterna, indestrutível e indissolúvel. Esta é a ideia básica na doutrina cristã da ressurreição do corpo, sendo que tal ressurreição significa a reconquista de nossa estimada personalidade, agora em uma forma purificada, digna de se apresentar ante a majestade do Todo-poderoso. E supõe-se que esta personalidade continuará a existir para sempre - muito embora, por uma curiosa falta de lógica, não se acredite que haja existido em algum lugar, em qualquer estado ou forma, antes do nascimento carnal do indivíduo mortal. A personalidade não existia nas esferas extra-humanas, desde toda a eternidade, antes de sua manifestação temporal na terra. Afirma-se que passa a existir com o ato mortal da procriação; no entanto, também se afirma que prosseguirá depois de abandonar a estrutura mortal procriada: temporal em seu início, imortal em seu fim.
O termo "personalidade" deriva da palavra latina persona. Literalmente, persona significa máscara - que o ator do teatro grego ou romano usava sobre a face; a máscara "através" (per) da qual ele "recita" (sonat) sua parte. A máscara é o que porta as feições ou caracterizações do papel, os traços de herói ou heroína, de serviçal ou mensageiro, enquanto o ator, por trás dela, permanece anônimo, como um ser desconhecido, intrinsecamente separado do drama, onde sofrimentos e paixões representados não o atingem de maneira direta. Originalmente o termo persona, no sentido de "personalidade", deve ter significado que os indivíduos só estão personificando aquilo que parecem ser. A palavra indica que a personalidade é apenas a máscara do papel que cada um tem de representar na comédia ou na tragédia da vida, e que não deve ser identificada com o ator. Não é uma manifestação de sua verdadeira natureza, mas um véu. Todavia, a concepção ocidental - que se originou com os próprios gregos e, a seguir, foi desenvolvida pela filosofia cristã - anulou a distinção, implícita no termo, entre a máscara e o ator cuja face oculta. Ambos, por assim dizer, tornaram-se idênticos. Terminado o drama não se pode tirar a "persona"; esta fica colada quando da morte e na vida do além. O ator ocidental, tendo se identificado de maneira absoluta com a personalidade que representou durante sua existência no teatro do mundo, é incapaz de retirá-la quando chega o instante de partir, e assim a conserva indefinidamente, por milênios, e até por eternidades, ainda que a peça já tenha acabado. Perder sua "persona" significaria para ele perder toda esperança de um futuro além da morte. Para ele, a máscara se fundiu e se confundiu com sua essência.
Por outro lado, a filosofia indiana insiste na diferença e acentua a distinção entre o ator e seu papel. Enfatiza continuamente o contraste entre a existência do indivíduo que se manifesta e o ser real do ator anônimo, oculto, velado e encoberto pelas vestes do drama. Na verdade, desenvolver uma técnica segura para manter clara a linha que separa ambos (ator e papel) tem sido um dos esforços dominantes do pensamento indiano através dos tempos. Durante séculos foram se sucedendo as meticulosas definições de suas relações e formas de ajuda mútua; igualmente perduraram os esforços - práticos, sistemáticos e corajosos - para ultrapassar os limites de uma e penetrar nos insondáveis domínios da outra, fazendo uso, acima de tudo, dos numerosos processos introspectivos do yoga. Penetrando e dissolvendo as camadas da personalidade manifesta, a consciência inexoravelmente introvertida perfura a máscara e, por fim, descartando-a em todos os seus estratos, chega ao anônimo e curiosamente indiferente ator de nossa vida.
Embora sejam encontradas, nos textos hindus e budistas, vívidas descrições dos tradicionais infernos e purgatórios, onde espantosos detalhes são minuciosamente apresentados, a situação nunca é a mesma que vemos nos mundos do além criados por Dante e Homero, repletos de celebridades mortas há muito tempo e que, não obstante, ainda conservam todas as características de suas máscaras pessoais. Nos infernos orientais, as multidões de seres que agonizam em meio a tormentos não guardam os traços de suas individualidades terrenas. Alguns podem recordar haverem estado numa certa parte e até saber qual foi a ação que provocou a punição atual; contudo, geralmente, todos estão perdidos e afundados em suas presentes misérias. Assim como qualquer cachorro está absorvido no estado de ser precisamente o cachorro que é, fascinado pelos detalhes de sua vida atual - e como nós mesmos estamos em geral enfeitiçados por nossas presentes existências - assim também estão os seres nos infernos hindus, jainas e budistas. São incapazes de lembrar qualquer estado anterior, qualquer veste usada numa existência prévia, identificam-se exclusivamente com o que são agora. E esta é, desde já, a razão porque estão no inferno.
Uma vez que esta ideia indiana se apresenta à consciência, imediatamente surge a questão: "Por que estou obrigado a ser o que sou? Por que tenho que usar a máscara desta personalidade que penso e sinto ser eu mesmo? Por que tenho que suportar este destino, as limitações, ilusões e ambições deste papel peculiar que estou sendo impelido a representar? Ou, por que, se já deixei uma máscara atrás de mim, estou novamente com outra frente à ribalta, representando outro papel em um cenário diferente? O que me compele a continuar deste modo, sendo sempre algo exclusivo, um indivíduo, com todos estes defeitos e experiências? Onde e como poderei alcançar outro estado, aquele de não ser algo particular, assediado por limitações e qualidades que obstruem meu ser puro e sem limites? Pode alguém se converter em algo livre de todo matiz e cor específicos, não definido por uma forma, não limitado por qualidades, algo que não seja específico e, portanto, não sujeito a nenhuma vida específica?"
Estas são as perguntas que conduzem ao ascetismo e à prática do yoga. Brotam de um melancólico cansaço da vontade de viver - a vontade fatigou-se, por assim dizer, das perspectivas deste interminável "antes e depois", como se um ator repentinamente se enfastiasse de sua carreira. Uma carreira condenada ao curso intemporal de transmigrações: um passado sem lembranças e um futuro sem projetos! "Por que me preocupo em ser o que sou: homem, mulher, camponês, artista, pobre ou rico? Se já personifiquei, sem me recordar, todos os papéis e atitudes possíveis - uma e outra vez num passado irrecuperável e em mundos que se dissolveram - por que continuo?"
Sem dúvida, seríamos levados a detestar a comédia da vida se não estivéssemos cegos, fascinados e iludidos com os detalhes do próprio papel que representamos. Se não estivéssemos enfeitiçados pelo argumento do drama que nos mantém prisioneiros, sem dúvida desistiríamos, abandonaríamos a máscara, a veste, as partes, a operação toda. Não é difícil imaginar por que, para alguns, poderia tornar-se simplesmente enfadonho prosseguir com este compromisso permanente, representando uma personagem após outra nesta interminável trupe da vida.
Quando se sente a sensação de fastio ou náusea (como aconteceu repetidas vezes na longa história da Índia), então a vida se revolta, se rebela contra sua mais elementar tarefa, ou dever, de seguir automaticamente para a frente. Ao passar do individual para o coletivo, este impulso provoca a fundação de ordens ascéticas, como aquelas das comunidades jainas e budistas de monges sem lar: exércitos de atores renegados, heroicos desertores, andarilhos e auto-exilados da farsa universal que é a força da vida.
Se estes renegados estivessem preocupados em se justificar, argumentariam assim:
"Por que teria que nos importar o que somos? Que verdadeiro interesse temos no que diz respeito a todos aqueles papéis que as pessoas estão continuamente obrigadas a representar? É realmente lamentável o estado daquele que ignora já ter representado toda sorte de personagens, muitas vezes - como mendigo, rei, animal, deus -, e que a vida do ator não é melhor num papel do que em outro. Porque o fato mais óbvio acerca do compromisso infindável é que todos os objetos e situações da trama já foram propostos e perduram em repetição interminável através dos milênios. As pessoas devem estar completamente cegas para se submeterem sem descanso ao feitiço das mesmas fascinações de outrora; cativas das tentações aliciantes que têm seduzido todas as criaturas que já viveram; saudando com expectativa - como a uma nova e emocionante aventura - os mesmos fatos banais que decepcionaram indefinidamente seus desejos e esperanças, apegando-se a esta ou àquela ilusão. Tudo isto é apenas o resultado do fato de que o ator segue representando papéis, cada um deles aparentemente novo, mas que já foi desempenhado muitas vezes, embora com roupagens ligeiramente diferentes e com outros elencos. É óbvio, trata-se de um impasse ridículo. A mente foi enfeitiçada, apanhada ardilosamente pelas pressões de uma cega força vital que redemoinha as criaturas numa incessante corrente cíclica. E por quê? Quem ou o que produz isto? Quem é o tolo que mantém esta absurda comédia no palco?"
A resposta que deveria ser dada a quem não fosse capaz de encontrá-la por si mesmo seria simplesmente esta: o homem, o próprio homem, cada indivíduo. E a resposta é evidente porque cada um segue fazendo o que sempre tem feito, imaginando que faz algo diferente. Seu cérebro, sua língua, seus órgãos de ação estão incorrigivelmente possuídos pelo impulso de fazer algo novo - e o indivíduo o faz. É assim que ele constrói novas tarefas para ele próprio, contaminando-se a cada instante com novas partículas de matéria cármica, que penetram em sua natureza, afluem a sua mônada vital, mancham sua essência e obscurecem sua luz. Estes envolvimentos o acorrentam a uma patética existência de desejos e ignorâncias, na qual guarda com veneração sua personalidade transitória como se fosse algo substancial - aderindo ao breve feitiço da confusa vida, única coisa que conhece, e protegendo com zelo a momentânea passagem da existência individual entre o nascimento e a pira funerária -, deste modo prolonga inconscientemente o período de sua escravidão pelas estradas indefinidas do futuro. Em incessante busca do que concebe ser seu próprio bem-estar e felicidade, ou os de algum outro, apenas consegue estreitar seus próprios grilhões e os dos demais.
Heinrich Zimmer
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